Paulo Serra
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A política da cultura II
O facto de acharmos que uma questão é
simples talvez diga menos acerca da simplicidade da questão do que da nossa
incapacidade para pensarmos essa questão, para a vermos mesmo como uma
questão. Tal não significa, contudo, que pensar uma questão
seja um atributo dos "pensadores" ou dos "intelectuais", com
ou sem canudo; muitas vezes é mesmo o contrário que acontece, revelando-se
a "instrução" e a "formação" de
um indivíduo como inversamente proporcionais à sua capacidade para
pensar. Talvez, por isso mesmo, muitas das pessoas que ao longo da vida mais nos
dão que pensar sejam as chamadas "pessoas simples" ou "do
povo".
A questão da cultura é precisamente uma dessas questões,
aparentemente simples, mas que na realidade se revela de uma complexidade tremenda
- a começar pelo significado do termo, como o mostra o facto de um dos
mais recentes dicionários da língua portuguesa indicar nada mais
nada menos do que doze definições de "cultura", que vão
desde a cultura como cultivo ou amanho da terra à cultura como conjunto
de conhecimentos (Cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea,
Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Verbo, 2001, p. 1042). De facto,
o que se entende por cultura? Há uma cultura ou vários tipos de
cultura? E, a haver vários tipos de cultura, quais as suas relações?
O que é que faz e o que é que não faz parte da cultura? Todos
os homens são cultos? Todos os homens criam cultura ou apenas alguns o
fazem?
Procurando responder a algumas destas questões, o poeta, filósofo
e ensaísta T. S. Eliot afirmava, num texto de 1948, que a cultura "inclui
todas as actividades e interesses característicos de um povo: o Derby Day,
a Heneley Regatte, Cowes, o doze de Agosto, uma final da Taça, as corridas
de cães, o pin table, o jogo de dardos, o queijo wensleydale, repolho cozido
cortado aos bocados, beterraba em vinagre, igrejas góticas do século
dezanove e a música de Elgar." (T. S. Eliot, "Os três sentidos
de 'cultura'", in Ensaios Escolhidos, Lisboa, Cotovia, 1992, p. 125). Sublinhe-se
que a afirmação de Eliot não exclui, obviamente, as diversas
formas da chamada "cultura erudita" ou "alta cultura" - apenas
se recusa a erigir tais formas em modelo exclusivo ou mesmo dominante da cultura
de um povo.
O que é caricato é que, mais de meio século depois destas
palavras de Eliot, haja ainda "agentes culturais" - talvez fosse melhor
chamar-lhes "intermediários" ou "divulgadores" - que,
por terem lido uns livros ou visto uns filmes que mais ninguém leu ou viu,
ou leu ou viu mas também não percebeu, pretendam ditar a lei não
só em matéria de cultura como, de forma mais geral, em tudo o que
diz respeito à vida de uma comunidade, a começar pela gestão
política e a terminar no ordenamento. Subjacente a tal pretensão
está, obviamente, uma concepção muito precisa de "cultura":
a de que a "cultura" é, acima de tudo, uma forma de ganhar e
de exercer um poder sobre a sociedade em geral e sobre os poderes públicos
em particular, que são "bons" quando acolhem os projectos dos
ditos "agentes culturais" ou dos seus amigos e "maus" quando
deixam de o fazer.
Neste jogo de interesses, alguns não se coíbem, mesmo, de fazer
o papel de "idiotas úteis", atacando, hoje, os que ontem apoiavam
e vice-versa, saltitando, quais passarinhos desvairados, de ramo em ramo ao longo
de todos os ramos. Como se no fundo quisessem, sem explicitamente o quererem,
tomar à letra a afirmação de Eliot de que, de facto, a cultura
tem tudo a ver com a questão do "repolho". Ou, como diria o Eça,
com a sua fina ironia, com a questão do "repolhozinho"...
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