Urbi @ Orbi - O que é para si o conceito de lusofonia?
José Travassos - A lusofonia é a solidariedade entre todos os
povos, através de meios pacíficos. Há que entender a existência
do denominador comum - a língua. Cada um tem a sua identidade e a sua ideologia
religiosa ou política, mas acima disso está o espírito que
já vem do Padre António Vieira e de Agostinho da Silva, com o "Quinto
Império".
U@O - Esse conceito ainda é actual?
J. T. - Nos dias que correm, a lusofonia é mais pragmática do
que teórica, por isso há que fazer uma leitura sociológica
da ideia. O grande sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, considerado pai
desta teoria da lusofonia, define-a numa perspectiva da prática cultural
dos diferentes países de língua portuguesa. As pessoas com o espírito
lusófono sentem-se dentro desse espaço completamente à vontade.
U@O - Como assim?
J. T. - È o espírito de aculturação, tendo por
base o respeito pela diferença dos outros, sobretudo no campo linguístico
e das tradições orais de cada povo. Por exemplo, em Portugal com
os dialectos mirandês e o barranquenho. Não temos espírito
de ocupação. Às vezes, pensa-se e fala-se muito no Imperialismo
português, mas o contacto que Portugal teve com os outros povos, nunca foi
por motivos de ocupação. Nós não nos procuramos impor,
aculturamos. Daí que o grande espírito da lusofonia esteja na aculturação.
Urbi @Orbi - A 17 de Dezembro de 2001 foi inaugurada uma exposição
de espólios de literatura lusófona. Como surgiu a ideia e a oportunidade
da doação desse conjunto de livros à Universidade da Beira
Interior (UBI)?
J. T. - Consegui os livros por ter vivido em Angola durante 25 anos. Aliás,
sempre gostei de estar actualizado e de ler bastante sobre assuntos relativos
às Ciências Sociais e a África. Esta é a razão
pela qual eu tenho imensa bibliografia e muitos documentos que precisavam de ser
preservados e vi que só havia uma hipótese: a sua doação
à UBI.
U@O - Como se processou a doação?
J. T. - Algumas pessoas amigas ligadas a universidade, como o José
Carlos Venâncio e Maria João Simões, ambos angolanos, incentivaram-me
a fazê-lo. E assim aconteceu. A 17 de Dezembro de 2001, por ocasião
da cerimónia de entrega do prémio da Fundação Oriente
a José Carlos Venâncio e Adriano Moreira, resolvi fazer a entrega
desses documentos. A exposição permitiu que as pessoas conhecessem
o conteúdo desse espólio, que, hoje, se encontra na Biblioteca Central
da UBI.
U@O - O espaço onde se encontram livros e esses documentos será
o futuro Centro de Estudos Lusófonos. Qual é a sua opinião
a localização do Centro de Estudos?
J.T. - A UBI e a Covilhã são, segundo os mentores da ideia de
um Centro de Estudos Lusófonos, espaços ideais para a concretização
desse projecto.
O sociólogo coleccionou livros em África durante mais de
25 anos
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"Angola podia ser um dos países mais desenvolvidos do mundo"
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U@O - Vai para Angola em 1951. Qual era o ambiente político em Portugal
na altura?
J.T. - Em 1945, embora Portugal não tivesse participado na guerra,
vivia num regime ditatorial, fora da maneira de ser e da mentalidade do povo português.
Foi um conceito de uma sociedade que estaria fora das tradições
e costumes portugueses.
U@O - Quais foram as consequências para Portugal?
J.T. - Nessa altura, Portugal não aceitou o Plano Marshall e ficou
isolado. A Europa foi praticamente destruída, mas com a implementação
do Plano Marshall, desenvolveu-se rapidamente. Foi pena Portugal não o
ter aceite e, por isso, auto-marginalizou-se.
U@O - Qual o papel das colónias neste cenário?
J.T. - Temos que reconhecer que, ainda nessa altura, existe um certo tipo
de colonialismo, porque a estratégia de Portugal era a não-adesão
ao Plano Marshall, uma vez que contava com as riquezas dos territórios
ultramarinos, que é o caso de Angola com café, diamantes, ouro,
petróleo e jazidas de minerais.
U@O - E quem foram os beneficiados com tais riquezas?
J. T. - O problema é que quem beneficiou não foi o País
todo. As populações do interior viram-se na necessidade para sobreviver
de emigrar aos milhares para toda a parte do mundo. Essas riquezas do ultramar
português nem sequer foram aproveitadas, devido aos vários erros
que vieram agravar a situação.
U@O - O que vai fazer para Angola?
J.T. - Eu fui sempre administrador do Quadro Técnico dos Serviços
de Administração Civil em Angola. Foi nessa circunstância
e como bolseiro que frequentei aqui em Portugal no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas (ISCSP), porque aos quadros de administração
eram-lhes exigidos que tivessem um curso superior na área de Ciências
Sociais.
U@O - Quando chega a Angola qual é o cenário político
que encontra?
J.T. - Apesar de ser um país rico, essa riqueza não se vislumbrava,
porque as situações mais ínfimas, como, por exemplo, a falta
de abastecimento de água.
Os produtos portugueses, como é o caso do vinho e do azeite, eram vendidos
de forma exorbitante e impunham-se preços de importação de
produtos angolanos para Portugal. As colónias eram consideradas grandes
pólos de desenvolvimento da metrópole.
"A falta de diálogo provocou toda
uma tragédia humanitária"
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José Travassos foi funcionário administrativo em Angola
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U@O - Como é que viu o aparecimento de movimentos independentistas?
J. T. - A génese dos primeiros movimentos independentistas surgira
no seio de estudantes universitários da Casa do Império em Portugal,
criada pelo Estado Novo. Agostinho Neto, Lúcio Lara e Mário Pinto
de Andrade foram grandes nomes dos movimentos pró-independência em
Portugal. Parece um paradoxo. Mas devia ter sido feita uma transição
política pacífica, tendo cada um a sua autonomia específica
ou a sua independência.
U@O - Está a dizer que devia ter existido, numa primeira fase, uma
autonomia administrativa e política para as ex-colónias e só
depois a independência propriamente dita?
J.T. - Eu defendia exactamente esse modelo de descolonização
para a África portuguesa. Talvez se tivesse evitado toda a tragédia
humanitária por causa da guerra. Porque faltou o diálogo.
U@O - Em 1961, os movimentos independentistas começam as lutas. Como
é que os portugueses em Angola, sobretudo aqueles que estavam à
frente da administração colonial, viveram essa situação
com o FNLA, um partido racista?
J.T. - A FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), surgiu
como UPA (União dos Povos Angolanos), o MPLA era conhecido embora actuasse
na sombra.
Enquanto que a UPA, em 15 de Março de 1961 dava início a onda de
assassínio e saques às populações a partir do Norte
de Angola, onde praticavam os crimes mais hediondos. Arrasou com tudo, nem poupou
os povos nativos. Foram massacrados homens, mulheres e crianças de maneiras
mais horríveis que existam. Portanto, era um movimento completamente alheio
a Angola.
U@O - Quem eram os membros da UPA?
J. T. - Não falavam português, não falam a língua
nativa, eram povos considerados invasores, e que não conheciam a realidade
angolana, por isso cometiam todas as atrocidades que se sabe. E os EUA estavam
por detrás disso tudo, uma vez que injectavam apoios financeiros e militares
com o propósito de depois colher dividendo da riqueza angolana.
É por isso que pergunto: quem era a figura do Holder Roberto? Mais tarde
e com o fim da guerra é aceite na mesa das negociações para
a independência. A partir daí deixa de ser a UPA e passa a ser FNLA.
U@O - E o MPLA?
J. T. - O MPLA surgiu dentro do espaço territorial e com o único
objectivo - a independência.
U@O - Qual foi a reacção do Governo português na altura,
face a esse cenário de luta de interesses económicos?
J.T. - A reacção foi total. Brancos, negros e mestiços
ficaram indignados com aquela situação. Os próprios militantes
do MPLA repudiaram a forma brutal e desumana por que passou a população
inocente de todo o território de Angola. Embora também usassem a
táctica da guerrilha, mas não no massacre às populações.
Foi esse impacto que leva a que haja uma reacção da metrópole
com a célebre frase do Salazar: " Angola em força!". A
partir daí parte um primeiro barco em finais de Março de 1961, com
3000 militares a bordo, com destino a Angola. Entretanto já tinham seguido
alguns militares antes que usaram a estratégia de combater o terrorismo
com terrorismo.
U@O - Qual a reacção do povo português ao prolongamento
da guerra?
J. T. - Nessa altura já estava em Angola há 10 anos. O terrorismo
na realidade impediu que Angola se desenvolvesse. A dada altura, a população
começou a desinteressar-se por tudo quanto se passava em Angola. Depois
não houve depois conjugação de esforços, não
se preparam as situações. A guerra foi-se arrastando, causando mal-estar
nos jovens em Portugal, porque quando se preparavam para entrar para as universidades
eram chamados para o serviço militar no Ultramar e os seus sonhos eram
interrompidos.
U@O - A guerra colonial foi uma estupidez do Governo português da altura?
J.T. - Não se pode dizer que foi uma estupidez. Agora não resta
dúvida que houve erro de estratégia política. Talvez devido
a esse autoritarismo do "quero, posso e mando"
Para Travassos, toda a estratégia portuguesa
durante o período da descolonização foi mal conduzida
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"O principal problema na altura foi o receio de que os "retornados"
viessem usurpar os empregos existentes"
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U@O - Essa guerra, ainda hoje tem reflexos dramáticos nas populações
portuguesas. Que comentário lhe merece esta realidade?
J.T. - Não só em Portugal, mas mesmo na sociedade angolana as
marcas da guerra colonial ainda é bastante presente. Por exemplo Angola
estava num desenvolvimento fantástico. Hoje podia ser um dos países
mais avançados do mundo. Esperemos que a paz seja uma realidade irreversível.
U@O - Dando agora um salto até à revolução de
1974. As ex-colónias foram deixadas ao deus-dará
J.T. - A União Soviética e os Estados Unidos, as superpotências
da altura exerceram influência nessa questão. No caso de Angola,
o petróleo chamou a atenção destes países, que tentaram
estabelecer ligações. Infelizmente, foi fácil a esses países
negociar com um super-milionário como o José Eduardo dos Santos
que deixa a população a viver em miséria total.
U@O - Os interesses económicos dominaram o processo?
J. T. - Essa é a minha opinião.
U@O - Depois da guerra colonial e da revolução de Abril há
o regresso a Portugal dos chamados "retornados". Como é que estas
pessoas foram recebidas?
J.T. - Verificou-se que certas camadas elitistas, quer de direita, quer de
esquerda, não viram com bons olhos o regresso em massa de pessoas, mas
a população em geral acolheu-os bem.
U@O - Mas nem tudo foi um mar de rosas.
J.T. - O principal problema na altura foi o receio de que os "retornados"
viessem usurpar os empregos existentes. Naquela altura, muitos portugueses eram
obrigados a emigrar por falta de condições de vida e pensou-se que
os "retornados" iriam ser beneficiados pelo Governo. O que não
aconteceu.
U@O - O que aconteceu então aos "retornados"?
J.T. - Na verdade, estas pessoas vieram dinamizar muitos pontos do País.
Em zonas como o Aveiro ou Trás-os-Montes, abriram muitos negócios
que eram necessários para a região.
U@O - Que tipo de pessoas eram?
J.T. - Havia gente de todo o tipo, desde o analfabeto ao professor universitário.
Por exemplo, em Braga, Évora ou Covilhã muitos professores e funcionários
que ajudaram a lançar essas instituições são "retornados".
"Sempre pensei regressar às origens"
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Com a independência de Angola, o sociólogo viu-se obrigado
a voltar a Portugal
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U@O - Como foi a sua integração?
J.T. - Eu sempre pensei em regressar às origens. Estive quase para
ir para a Universidade de Évora, só que, entretanto, surge uma proposta
de um homem que deve ser sempre recordado - Duarte Simões, fundador do
Instituto Politécnico da Covilhã.
U@O - Qual foi a proposta?
J.T. - Integrar os quadros administrativos dos Serviços Sociais, que
estavam ainda em fase embrionária. Fui o primeiro funcionário a
integrar os Serviços Sociais. Duarte Simões convenceu-me, como a
muitos outros beirões, da necessidade de apoio ao Instituto Politécnico
da Covilhã.
U@O - O que despoletou o desenvolvimento dos Serviços Sociais?
J.T. - O grande passo deu-se devido à necessidade. Em 1979, um grupo
numeroso de estudantes de Moçambique veio para a Covilhã e era preciso
obter residências para os acolher. Duarte Simões, através
dos seus contactos, consegue um subsídio da Fundação Gulbenkian.
O restante dinheiro para a compra da primeira residência em Santo António
veio do Governo. O antigo colégio de freiras foi adquirido e hoje é
ainda um edifício útil.
Após a morte de Duarte Simões, felizmente a sua mensagem não
se quebrou. Foi retomada por Passos Morgado e Santos Silva. O actual reitor tem
a particularidade de ter sido o primeiro doutorado pela UBI.
U@O - Como evoluíram os Serviços Sociais até aos dias
de hoje?
J.T. - Nota-se que houve um grande investimento ao longo dos anos. No início
existia só um bar e agora existem vários bares e cantinas. A nova
residência que vai servir o Pólo de Ciências Sociais e Humanas
está quase construída. Há algumas situações
que não são óptimas, mas isso é normal. Penso que
a gestão é feita de forma correcta.
U@O - Está reformado desde 1996. O que faz habitualmente para passar
o dia?
J.T. - Não ando por aí a oferecer os meus serviços. Quando
me solicitam para colaborar com várias entidades, eu estou sempre disponível.
Aparte disso, passo muito tempo a ler, a ouvir música clássica.
Uma das minhas paixões é viajar, ainda há pouco tempo estive
em Barcelona. Só que não as considero passeios, mas visitas de estudo.
U@O - O aumento de propinas é um facto consumado. Qual o seu comentário?
J.T. - A UBI, tal como as outras universidades, precisa de criar receitas
próprias. Os Serviços Sociais podem angariar algum dinheiro com
a exploração dos bares, mas não é suficiente. Eu não,
de certo modo, sou contra o aumento das propinas, porque sou uma pessoa com um
espírito economia social. uma vez que 57 por cento dos empresários
foge aos impostos, uma forma de apoiar os alunos seria através do mecenato.
U@O - E os custos adicionais para os alunos?
J.T. - Quem está matriculado na universidade tem de ser responsável.
Não se pode desperdiçar dinheiro. Para quem não tiver sucesso
o melhor será talvez procurar outro tipo de emprego. A verdade é
que o Ensino Superior tem de ser encarado de forma diferente pelos alunos.
U@O - Em Julho de 1955, o Jornal do Fundão (JF) foi suspenso por publicar
um artigo sobre um prémio literário atribuído a Luandino
Vieira, escritor angolano. O que se passou?
J.T. - O JF foi sempre a voz das populações espalhadas pelo
mundo. A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu a Luandino Vieira o prémio,
mas a censura proibiu a imprensa de o publicitar. O JF decidiu publicar na mesma
uma notícia sobre o assunto, o que lhe custou seis meses de suspensão
de publicação.
U@O - Quem é Luandino Vieira?
J.T. - O primeiro escritor angolano a escrever em crioulo e um amigo de longa
data. Actualmente, reside no Porto, padecendo de uma doença grave. A última
vez que me encontrei com ele foi em 1991, quando o JF lhe prestou homenagem, no
Fundão.
U@O - Qual a importância deste escritor?
J.T. - A conferência que Luandino Vieira proferiu na sua vinda ao Fundão
em 1991 foi a semente da actividade de lusofonia que se verifica na região
e, em especial, da ligação da UBI a este movimento.
U@O - Há a ideia corrente que o projecto, pelo menos no que concerne
à criação do Centro de Estudos Lusófonos, está
parado. O que poderá ser feito para combater esta tendência?
J. T. - Eu não estou, neste momento, ligado directamente à UBI.
No entanto, há laços que nunca se quebram. Não acredito que
o Carlos Venâncio, a pessoa responsável pelo Centro, vá desanimar.
E eu também não. A possibilidade futura passará, talvez,
pela criação alternativa do Instituto de Estudos Lusófonos.
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