João Correia

Brasil: o outro lado do sonho


As casas da classe média e alta são fortalezas: sistemas de vigilância, barras, correntes e muros altos.. Os restaurantes são cómodos e fartos. Porém, setenta por cento da população vive com o salário mínimo nacional


No princípio de Junho, quatro investigadores de Ciências da Comunicação da UBI - António Fidalgo, Paulo Serra, Manuela Penafria e eu próprio - deslocaram-se ao Recife, ao XII Encontro Anual de Cursos de Pós-Graduação em Comunicação (Compós). Desta deslocação ao Brasil resultam três registos fundamentais: o encontro, o país, e as esperanças num tempo que todos querem que seja de mudança.
O Encontro da Compós é um exemplo do melhor lado do Brasil. Desde logo, o Brasil é um país onde as novas humanidades que emergiram nos anos 60 e 70 (nomeadamente, os estudos em Comunicação) têm uma tradição mais antiga do que em Portugal. Os participantes neste encontro estão habituados a um registo de discussão acesa com a apresentação de uma comunicação a que se segue uma réplica (a crítica da comunicação) e uma tréplica (a resposta à crítica). Há uma tradição democrática de exercício da crítica à qual os textos dos mais graduados na titulação académica se não furtam. Sem modéstias: os investigadores portugueses cumpriram (bem) o papel que lhes cabia.
Quanto ao país, há uma palavra escrita em cada esquina: sobrevivência. Os "meninos da Rua" saltam do chavão para a verdade, com a sua "violência inocente", tão quotidiana que parece existir para além do bem e do mal: pendurados nas traseiras dos autocarros, cheiram tubos de cola ( droga de pobres), assaltam turistas, fazem recados aos criminosos locais. Com um sorriso encantador, jogam o seu jogo no único tabuleiro onde as hipóteses não são todas contra eles. As casas da classe média e alta são fortalezas: sistemas de vigilância, barras, correntes e muros altos.. Os restaurantes são cómodos e fartos. Porém, setenta por cento da população vive com o salário mínimo nacional. No mercado de São José -onde se vende de tudo - encontram-se muita roupa e sapatos que se vendem às prestações com juros baixos. A outra palavra que surge em cada esquina é beleza. Beleza das pessoas, elegância de gestos e de olhares, beleza nas árvores e no mar, nos recifes de coral e nas cores das madeiras. Ao lado do Recife, em Olinda sente-se o génio português: um belíssimo mosteiro do século XVIII no meio de uma vegetação para a qual faltam adjectivos adequados. A beleza natural provoca um silêncio. Mesmo agora, não consigo falar na variedade das paisagens, das árvores, das frutas, das flores, dos peixes, das espécies.
Em último lugar, a esperança. Como fiquei no Grupo de Trabalho de Comunicação e Política senti-a como se como se tivesse existência palpável Ouvi falar dela, a gente de esquerda e de direita assumida e ortodoxa. Um colega pertencente a uma fundação de cariz liberal, pouco dado a simpatias de esquerda, dizia com uma determinação implacável: "Não é possível aguentar mais a estratificação que existe neste país." Também presenciei desabafos mal contidos de cepticismo amargo. Quando regressei às ruas, vi outra vez tudo: o mar magnífico, a agitação dos meninos e dos pobres ocupados em arranjar modo de comer, as casas amuradas dos ricos. É uma equação complicada. Sente-se o enorme fardo feito das inúmeras esperanças destas pessoas, cuja imensa maioria merece usufruir de um outro destino. É fardo ou é fado? Ou é samba? Será que vai dar certo? A dimensão do desejo ficará à altura da tarefa? A história, como sempre, desaconselha que se façam apostas.