Anabela Gradim
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A chinelada
Eduardo Lourenço escrevia nas páginas do Público, pouco antes
da invasão e ocupação do Iraque, quando a inevitabilidade
da guerra já era por todos os agentes pressentida, que a única coisa
que Saddam não entregara aos inspectores da ONU fora a escova de dentes.
Aparentemente, estava certo. Confesso que nunca esperei que a situação
envolvesse um amadorismo assim tão confrangedor, e acreditei piamente que,
pelo menos a posteriori, algumas armas incriminatórias vindas sabe-se
lá de onde iriam aparecer. Dormiriamos todos mais descansados.
Em vez disso tivemos direito a uma reportagem histérica sobre meia dúzia
de perigosíssimas máscaras de gás encontradas num hospital.
Edificante. E em vez das armas, e do suposto perigo - esta foi a motivação
com que a ocupação foi vendida e efectuada - notícia de como
os relatórios dos serviços secretos foram apimentados, reescritos
e emendados para vender o perigo. Brilhante. Muito tranquilizador mesmo.
Enfim, o resultado provisório da invasão parecem ser uns chorudos
contratos de reconstrução do país ocupado e desfeito; o efectivo
controlo manu militari das suas riquezas naturais; a descompressão
dos arsenais "inteligentes" - já se pode continuar a produzir
-; a contaminação do território com urânio empobrecido
e sabe deus que mais (exorto todos os belicistas de sofá a passarem lá
umas férias, beberem água, comerem salada de alface, e arriscarem
terem por lá filhos!); uns milhares de mortos; um sério aviso à
navegação; o direito internacional reduzido à lei do mais
forte; a Europa em coma reafirmando a sua inexistência política;
e por fim a mentira que nos tentaram vender e em que tantos, com responsabilidades,
fingiram acreditar. Esta é que é a chinelada. E não adianta
assobiar para o lado. Nem dizer: desculpe que foi engano. Ou, noutra versão,
que podia muito bem haver armas. Pois podia. E porcos com asas também.
Já o Marquês de Sade sabia muito bem no século XVIII que,
não tendo o homem o perfeito conhecimento das leis da natureza, não
pode saber com certeza o que é ou não possível, o que é
ou não milagre (a polémica era contra a Igreja), e que por isso
nada é impossível. Ora pelo que se tem visto, não sendo impossível,
já será do domínio do milagre se tais armas vierem a aparecer.
Por fim, parece que Portugal sancionou a ocupação por razões
morais. Devem ser aquelas a que se referia o Papa, quando disse que os fazedores
desta guerra assumiam uma grande responsabilidade moral. Longe de nós fugirmos
às nossas responsabilidades; embora ande tudo distraído a saltar
às canelas do acontecimento mediático do dia, torturando-o malcriadamente
com perguntas a que não quer nem vai responder.
E não, a chinelada não é anti-americanismo primário.
É, apenas, uma triste e desencantada constatação. Na verdade,
pelo espaço que o tema ocupa no nosso espaço público, suponho
que a esperança reside outro lado do canal da Mancha, e do outro lado do
Atlântico, no povo americano e no que este tem de melhor. Que reajam contra
a onda de obscurantismo que tem varrido este início de milénio.
Por cá, infelizmente, e parafraseando um antigo primeiro ministro, de fait
divers em fait divers, ainda faltará muito até as gentes
arranjarem algo melhor e mais útil para fazer.
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