Por Ana Rodrigues e Sandra Carvalho



A natação é uma das actividades praticadas por este conjunto de pessoas

"Na altura em que me empreguei tive de bater a muitas portas, mas parece que nesse tempo era mais fácil a integração na sociedade". É com este desabafo que António Sardinha ilustra as dificuldades com que os cegos se deparam.
António Sardinha, presidente da delegação Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), na Covilhã, conseguiu o seu primeiro emprego, já lá vão 36 anos, como telefonista no hospital. Há 20, "para ganhar mais", refere, mudou-se para o Instituto de Emprego e Formação Profissional, onde até hoje exerce as mesmas funções.
Mas esta é uma situação atípica, se tivermos em conta que na Covilhã, apenas dois dos 15 cegos estão empregados. A falta empregos para invisuais é apenas um dos obstáculos com que se deparam no dia a dia.
Andar na rua sozinho torna-se uma aventura. Os passeios demasiado altos e ocupados com carros, a falta de sinalização sonora nos semáforos, passadeiras sem pavimento diferente e sem rampas de acesso ou as muitas obras, que deixam as ruas esburacadas, são entraves para que os cegos se desloquem de forma autónoma.
Há algum tempo a câmara distribuiu bips individuais que indicam quando os semáforos muda de cor, mas desde as obras no pelourinho nunca mais funcionaram. "Já fiz ver isso à senhora vereadora, mas até agora nada foi feito", frisa o presidente da delegação da ACAPO. A associação, para além de tentar integrar os invisuais, procura sensibilizar a sociedade para este tipo de problemas. À semelhança dos objectivos nacionais da associação, a delegação da Covilhã procura ajudar os cegos a entrar no mercado de trabalho, promove cursos de informática e apoia os sócios no acesso a actividades culturais, recreativas e desportivas.
António Sardinha, no seu ar calmo, lembra o que se tem feito, mas lamenta a falta de meios que os impossibilita o desenvolvimento de um trabalho mais completo. "Gostaríamos de fazer muito mais, mas as condições não o permitem", confessa. Apoiado na bengala que o guia para todo o lado, explica que "o problema da casa é a falta de dinheiro". E dá um exemplo: "Não temos como nos deslocar junto das empresas para fazer campanhas de sensibilização para aliviar situações como a falta de independência a nível financeiro". Isto porque a maioria dos cegos não vive de pensões mas da ajuda de familiares.





Força de vontade

Beatriz Barata começou a ter problemas de visão aos oito anos. Pouco depois foi para um colégio, em Lisboa, aprender braille. Com 16 anos cegou totalmente.
Esta professora de Educação Musical teve formação no Conservatório e fez a licenciatura na Guarda, onde era a única invisual. Aí teve que lidar com a incompreensão dos professores e a falta de preparação da escola. "A adaptação teve que ser inteiramente minha", observa, "o que só revela que as pessoas não estão sensibilizadas para as deficiências dos outros", acrescenta a professora, na sua postura expedita.
Actualmente dá aulas ao 2º ciclo, no Teixoso, e todos os anos concorre em pé de igualdade com os outros colegas, o que a leva por vezes a ficar deslocada da residência. Há um concurso previsto para pessoas com deficiência, mas é o último, e segundo Beatriz nem vale a pena arriscar, "porque nessa altura já não há vagas".
Beatriz Barata sente-se integrada na sociedade e não se considera discriminada, mas recorda um caso ocorrido no Colégio do Tortosendo. Concorreu a uma vaga, e quando se apresentou ao serviço e perceberam que era cega, a atitude mudou radicalmente.
Mas Beatriz diz que não se deixa abater com os obstáculos e assegura que sempre teve muita força de vontade. A professora de música subscreve o lema da ACAPO, "Queremos, Podemos", porque, sustenta, "o cego não é um coitadinho". No entanto, Beatriz reconhece que alguns não têm uma oportunidade.


Adaptar o ensino

A ACAPO tem quatro mil sócios em todo o País

À semelhança de Beatriz, qualquer criança cega que ingresse no ensino irá sentir a incapacidade que a escola tem em dar resposta às suas necessidades especiais educativas. Ao contrário do que acontecia no passado, quando os cegos tinham escolas especializadas, agora são colocados em instituições normais.
Atenta a esta situação, a ACAPO está a ministrar um curso de braille, frequentado maioritariamente por professores. Segundo António Sardinha, fazem-no com o fim de se preparar para a eventualidade de lhes aparecer um aluno deficiente visual. Para que lhe consigam ensinar e entender essa linguagem.
Margarida Rebordão, cooperante da ACAPO, é uma das pessoas que frequenta o curso. Como professora defende que "esses alunos têm que ser realmente integrados na sociedade, e se os põem em turmas normais, têm que ter meios disponíveis para os poder avaliar. Se não tiverem um apoio diferente, eles vão-se sentir à parte", sustenta.
Margarida vê este curso como uma boa oportunidade que não quis desperdiçar, e considera que será uma ajuda adicional "para os ajudar a eles", uma vez que é colaboradora.
Até ao momento, a "Dona Guida", como é conhecida, diz que as aulas estão a ser muito interessantes. "Estamos a começar pelo alfabeto, depois virão os números e por aí fora. Isto tem um método", esclarece. Neste momento adianta que estão a trabalhar com uma régua que compraram para o efeito, mas vão passar depois para as máquinas, e mais tarde irão aprender a escrever em computadores adaptados.
Margarida Rebordão sublinha ainda que durante o percurso escolar, toda a gente devir aprender ou, pelo menos, ficar com umas noções de braille.
A formadora, Luísa Sardinha, também é invisual. É ela que leva o material necessário à aprendizagem, emprestado por alguns colegas. Por vezes recorre à internet, para recolher material de apoio. Para além deste curso, já leccionou um outro de informática à distância, a partir das instalações da delegação. Uma área que também domina. O actual curso é frequentado por um número limitado de pessoas, "porque com muita gente não se consegue aprender, não se consegue levar o ritmo", argumenta.





Dificuldades

Este núcleo da ACAPO não dispõe das ajudas necessárias, nomeadamente de meios de transporte que possibilitem a recolha dos sócios para as actividades programadas. Só no concelho são cerca de 30 os invisuais ligados à ACAPO.
Outra limitação a uma vida normal é o facto de a cidade não ter serviços que respondam às necessidades especiais inerentes à deficiência visual. Enviar uma carta, comprar um livro ou consultar informação em braille num qualquer balcão, mesmo da função pública, é uma missão impossível. "Quando precisamos de alguma coisa temos de mandar para os serviços centrais da ACAPO, em Lisboa, para eles transcreverem", informa António Sardinha. Mas o presidente da delegação já tem uma impressora braille em casa, que lhes permite ir fazendo alguma coisa.
António Sardinha disse que há algum tempo foi sugerida à UBI a criação de um serviço de apoio, o que nunca veio a acontecer. E acrescenta que a universidade tem impressoras braille que julga não estarem a funcionar, justamente por não haver quem as utilize.
António Sardinha explica que se poderiam digitalizar livros e pô-los à disposição em disquete ou cd para os cegos. Para os que não aprenderam informática ou braille, que são normalmente os que cegam numa idade mais avançada, propõe um gabinete para a gravação áudio de livros.
Relativamente ao peso que a ACAPO tem no panorama nacional, de forma a poder ser um agente de pressão, António Sardinha comenta: "Nem sequer somos parceiros sociais. Somos um grupo com cerca de quatro mil sócios, e vamos estando em contacto com as entidades públicas e privadas para tentar dar a volta à situação, mas é bastante complicado".

Isolamento

A ACAPO procura ajudar cegos que se isolam

João Carvalho, septuagenário, faz questão em ter uma vida social activa. É frequente apanhar o autocarro na Soalheira, onde mora, para vir à Covilhã. Ficou cego aos 42 anos e a reacção não foi a melhor. "Nos primeiros anos custou bastante, mas depois fui-me adaptando e agora sou uma pessoa independente", confessa.
Este ex-agricultor, bastante sociável, sempre fez um esforço para ter uma vida o mais normal possível. Durante os dias passeia, vai até ao café, ouve música e vê televisão, sobretudo os noticiários. "Sim, ver é um bom termo, porque acabo por ver com a imaginação", garante. E não abdica das aulas de natação, assim como dos convívios que se organizam.
Mas há a outra face da moeda. Cegos que simplesmente se isolam ou se acomodam. Os que por um ou outro motivo se mantém afastados de tudo e de todos, e se remetem para um círculo restrito de relações.
A ACAPO está atenta a estes casos e procura as pessoas que se isolam. António Sardinha salienta que as contactam para estarem presentes nos convívios que têm feito. "Tentamos que venham até nós, ou podemos ir buscá-las, para tentar a sua integração. Mas depende muito do feitio de cada pessoa", explica o responsável. António Sardinha acrescenta que a tentativa de isolamento ocorre tanto nas pessoas jovens como cnas menos jovens. "Há de tudo um pouco", comenta. Alguns casos explicam-se por os cegos não conseguirem aceitar essa condição, por não se quererem mostrar à sociedade ou por medo de se sentirem discriminados.
O presidente da ACAPO na Covilhã conta um caso recente de um indivíduo que, devido à diabetes, está a cegar. Aconselhou-o a aprender o braille quanto antes, porque com o agravamento da doença, há a tendência para perder o tacto. E depois será mais difícil, ou mesmo impossível. "Mas é difícil a essa pessoa aceitar a situação", refere António Sardinha.
A atitude perante a doença depende muito do feitio de cada um, mas é também isso, em grande parte, que vai delimitar os seus horizontes.




Mãos solidárias



Por trás da realização das actividades da ACAPO há quase sempre uma . É o trabalho dos voluntários da associação, que dedicam parte do seu tempo a esta causa.
Margarida Rebordão faz parte deste grupo de pessoas. Durante alguns anos esteve ligada à ACM e desde há alguns meses que colabora com a ACAPO. "Dou um pouco de mim porque eles precisam", e acrescenta que este trabalho é muito gratificante.
Os cooperantes acabam por desempenhar um papel imprescindível no bom funcionamento das actividades programadas. Para além do apoio moral que dão, acompanham os invisuais nas aulas semanais de natação, nos passeios a cavalo, em todo o tipo de actividades desportivas em que participam e também nas excursões que organizam. E há ainda os que se encarregam da condução dos transportes. "Ainda há pouco tempo os levei a Lisboa ver o espectáculo Amália e eles gostaram bastante", diz Margarida Rebordão.
Mas os seis colaboradores são insuficientes para conseguir dar resposta a todas as solicitações. "As pessoas estão empregadas e só estão mais disponíveis aos fins-de-semana", sublinha Margarida, "é preciso é ter força de vontade e disponibilidade para os ajudar, mas isso depende do íntimo de cada pessoa".