Por Andreia Reis e Hugo Ribeiro


"Não sou apaixonado pela rádio, mas pelo jornalismo"

Urbi@Orbi- Como surgiu a paixão pela rádio?
Emídio Fernando -
Foi por engano. Eu não sou apaixonado pela rádio, mas pelo jornalismo. Trabalhava num jornal e só comecei a fazer rádio local por influência de um amigo meu. Aí fazia umas notícias, enquanto ele punha música. Um dia fui convidado para fazer o curso da TSF, local onde trabalho…

U@O- Em que consistia esse curso?
E.F. -
O curso da TSF era o mais completo a nível do jornalismo em Portugal. Era um curso de um ano, que consistia em formação no horário laboral do jornalismo: Teórico de manhã e prático à tarde. Na teoria tínhamos Português, Gramática, História da Diplomacia, História Contemporânea Portuguesa, História das Instituições, Direito Institucional e Direito Comercial. Enfim, eram cadeiras ligadas ao jornalismo, leccionadas por professores universitários e jornalistas.

U@O- Apesar de ter tirado o curso de Sociologia, hoje é jornalista. Como nasceu o gosto pelo jornalismo?
E.F. -
Sociologia foi por acidente. Uma pessoa chega a determinada altura da vida e pensa: "Agora vou para quê?". Acabei por me licenciar em Sociologia. O gosto pelo jornalismo surgiu porque antes de ser jornalista já escrevia muitas coisas para jornais. O meu sonho era de facto ser jornalista de um jornal, mas apareceu a TSF.

U@O- Há quanto tempo é jornalista?
E.F. -
Sou jornalista com carteira profissional desde que entrei para a TSF, em 1990. Mas antes estive dois anos em colaboração com outras empresas. Comecei muito novo num jornal de uma paróquia, em Cantanhede. Depois escrevi no DNJovem, que era uma página que o Diário de Notícias tinha. Como eles publicavam algumas coisas minhas, entusiasmei-me e comecei a colaborar.

U@O- Qual o seu percurso até ter chegado à TSF?
E.F. -
Estudei, trabalhei e fundei uma rádio que se chamava Rádio Visão Tejo, em Lisboa. Esta rádio levou-me para a TSF e comecei a ganhar algum gosto pelo jornalismo radiofónico. Ao mesmo tempo que trabalhava na TSF, fui correspondente de um jornal "Canal de África do Sul". Dei aulas como assistente no Instituto Politécnico da Guarda, na disciplina Técnicas de Expressão Jornalística, e também colaborei no Expresso, no Tal e Qual e no Público. Sempre me preocupei em escrever, porque gosto de escrever.




"Aqueles que se afirmam repórteres de guerra são uma treta"

U@O- Há quanto tempo é repórter de guerra?
E.F. -
Desde 1993, há dez anos. Comecei na Bósnia Herzegovina e depois estive em Angola, Moçambique, Ruanda, Zaire (actual República do Congo), Albânia, Macedónia, Jugoslávia e, agora, no Iraque.

U@O- A sua primeira experiência como repórter de guerra foi na Bósnia Herzegovina. Lembra-se de como tudo se passou?
E.F. -
Foi uma experiência muito violenta. Fui para um mundo completamente diferente e desconhecido. A primeira vez que fui fazer uma reportagem de guerra foi em Sarajevo, onde estavam os sérvios. Na altura fui para Belgrado e percorri aquele caminho todo. Tive uma grande ajuda de um jornalista do Público, mas mesmo assim foi muito difícil. Era a primeira vez que estava naquele local e os telefones eram complicados. Em Sarajevo recordava a guerra em Angola, quando era miúdo. Ainda hoje me perturbam os fogos de artifício das festas religiosas, porque me fazem lembrar os bombardeamentos da minha terra.
Também ia sendo morto: Puseram-me uma arma encostada à cabeça, queriam matar-me! Todas as guerras são violentas, umas mais do que outras. Hoje sou menos sensível com algumas coisas, tais como crianças, mortos, tiros. De facto, a guerra já não me afecta tanto como me afectou um dia.

U@O- Disse há pouco que era repórter de guerra desde 1993. Que tipo de jornalismo praticava antes?
E.F. -
Reportagens normais. Devemos desmistificar o conceito repórter de guerra, porque não existe. Existe repórter e ponto final. Podem dizer-me que sou repórter de guerra, porque sempre que há guerra eu vou pela TSF. Mas também sou considerado repórter de eleições, porque sempre que há eleições eu vou. Portanto não existe repórter de guerra. Aqueles que se afirmam repórteres de guerra são uma treta. Isso só serve para se promoverem. Já estive em situações mais complicadas do que uma guerra. Estive na Macedónia, numa guerra civil, numa altura de Verão, em que morreram mais pessoas na estrada em Portugal do que na guerra. Há situações mais perigosas do que propriamente uma guerra.

U@O- Foi enviado especial para o Iraque pela TSF. Qual a sua reacção quando recebeu a proposta?
E.F. -
Foi em cima da hora e fui muito pressionado. Estou um pouco cansado de fazer estas coisas. Sempre disse que Bagdad não era a minha guerra, porque aquilo ia ser completamente condicionado. Os americanos iam regularizar aquilo e não nos iam deixar circular. Fui muito mais livre a fazer a reportagem na Bósnia, em que ia sozinho de autocarro, no Ruanda, no Zaire ou em Angola do que no Iraque. Sempre disse que não fazia esta reportagem, até que o meu director disse "tens que ir" e fui.
Antes, quando eu era solteiro, ia sempre e habituei-os dessa forma. Telefonavam-me, diziam para arrancar no dia seguinte e eu arrancava. Hoje, como sou casado, há algumas reticências. A minha mulher resiste muito, até porque veio de uma guerra, é sérvia, e como ela costuma dizer, "as guerras não devem ser para ti". Mas há coisas que tem que ser e, ela, neste caso foi compreensiva.

U@O- Qual foi o seu percurso no Iraque?
E. F.-
Saí de Lisboa e fui para a Jordânia, onde me aconteceu uma coisa curiosa, pois tive de pagar a um senhor para me levar de camelo até à fronteira do Iraque. Como a TSF precisava de alguém na cidade, estive em Bagdad, local onde me instalei. Depois fui para Tikrit, An Najaf, locais onde estavam os xiitas, Kirkük e Karbala.

U@O- Quanto tempo esteve no Iraque?
E.F. -
A TSF, infelizmente, não esteve desde o início. Estive lá um mês.



"No Iraque não enfrentei grande perigo"


"Um jornalista tem que ser muito culto"

U@O- Quando há uma guerra é geralmente o enviado especial escolhido. Não há mais repórteres especialistas em guerra na TSF?
E.F. -
Alguns repórteres dão garantias pela experiência. Como já tenho alguma em guerra, fui eu o escolhido. Se fosse uma campanha eleitoral também ia, mas era um recurso, porque não era eu que o fazia desde o início. Numa campanha eleitoral há mais repórteres de política do que eu.

U@O- Neste conflito bélico morreram cerca de 20 jornalistas, quando exerciam a sua função. Outros foram agredidos de uma forma violenta. Qual foi o maior perigo que enfrentou nesta guerra?
E.F. -
Desta vez, no Iraque, não enfrentei grande perigo. Situações complicadas já tive muitas, como em Angola, na Bósnia e na Albânia. Mas no Iraque correu tudo normalmente. A única situação difícil foi quando fugi do Hotel Palestina, porque estava cheio de jornalistas e soldados norte-americanos. Achei que aquilo não tinha nada a ver comigo e fui-me embora. Fui para um hotel mais pequeno no centro da cidade e foi mais complicado, porque era o único jornalista no hotel e não tinha protecção. Em Karbala vivi outra situação difícil: Expulsaram-me de um templo porque diziam que eu era cristão e não podia estar ali.

U@O- Mas mesmo assim houve alguma situação que temesse pela vida?
E.F. -
Isto de temer pela vida é muito relativo. Eu receio mais atravessar uma rua e sair da auto-estrada que acaba em Castelo Branco. Eu sei aquilo que vou fazer! Se estou num sítio em que vou fazer uma reportagem, sei onde posso pisar e onde posso ir. Há uma situação mais ou menos controlada.
Sou ateu, mas tenho um truque. Como o meu país esteve em guerra durante muitos anos, costumo dizer para mim próprio: "Se eu não morrer na minha terra, não vou morrer a milhares quilómetros dela". O problema é acontecer-me o mesmo que me aconteceu em Angola, quando me tentaram matar. Acho que a primeira coisa que senti foi medo. O medo é controlado. O dia em que não tiver medo faço uma cruz. Quando estou numa situação de risco tenho essa protecção.

U@O- Um jornalista vê muitas vezes o seu trabalho ser dificultado. Que tipo de problemas encontrou no Iraque?
E.F. -
Os americanos condicionaram muita coisa. Não nos deixaram andar por muitos sítios, são arrogantes, são brutos, ameaçam disparar se alguém der um passo a mais. Esta foi a maior dificuldade.

U@O- Os americanos impediram os jornalistas em geral ou apenas os jornalistas não americanos?
E.F. -
Não sei se houve algum tipo de discriminação em relação aos outros jornalistas, mas a CNN deslocava-se nos carros das tropas americanas. Os soldados até ajudaram a carregar o material da televisão, porque é muito pesado.
Há outras dificuldades, mas são normais, como a falta de comida, a falta de luz e ter de fazer reportagens com uma lanterna. Mas para ir para um país daqueles já sabemos que vamos encontrar este tipo de dificuldade. Temos que estar preparados com esse tipo de coisas.

U@O- Enquanto estava no Iraque, sofreu algum tipo de censura no seu trabalho?
E.F. -
Não, não houve qualquer tipo de censura, porque não percebiam português. Acho que os jornalistas que editam em inglês tiveram problemas, mas os outros não. Não tive problemas no Iraque, nem em nenhum outro sítio, à excepção de Angola e Moçambique.

U@O- Em períodos de guerra, como é a relação entre os jornalistas?
E.F. -
Há de tudo um pouco. Há uma grande solidariedade por estarmos longe, fazem-se amizades, encontra-se gentes e culturas diferentes. Ainda por cima no Iraque encontrei jornalistas do Uzbequistão, da Letónia, da Lituânia, da Hungria. Foram encontros impensáveis, porque antigamente eram sempre os mesmos jornalistas.
Há também aquela arrogância anglo-saxónica da CNN, da Fox News e da NBC. Esses têm sempre um afastamento de tudo. A NBC, por exemplo, alugou um hotel inteiro em Bagdad, onde tinham um cozinheiro próprio, festas próprias em que não entrava ninguém local e estrangeiro. Em relação aos outros, há partilha de carros e de tradutores, porque são muito caros.

U@O- Quais são as características principais que um repórter deve ter?
E.F. -
Muita atenção, muita vontade, ter gosto por aquilo que está a fazer, ter grande disponibilidade e tentar contar tudo o que vê, porque é privilegiado ao ser os olhos dos ouvintes, dos leitores ou dos telespectadores. Depois deve ter outros cuidados mais básico como, por exemplo, não pode beber água sem ser engarrafada. Eu, por exemplo, só bebo 7up´s e Coca Colas. Também deve ter cuidado com roupas que leva para determinados sítios. Em países islâmicos, as mulheres jornalistas não podem levar roupas onde se destaque o corpo, os braços ou o peito. Há outros cuidados que eu tenho, como levar sempre comprimidos de primeira necessidade e vitaminas quando vou para sítios com muito calor.


"Um repórter tem que ser um jornalista"


U@O- Que conselhos dá a jornalistas que queiram ser repórteres?
E.F. -
Os repórteres têm que pensar na grande capacidade de sacrifício porque vão para sítios por vezes complicados. Não falo só em guerras. O que quero dizer é que um repórter é um tipo que está à porta da casa de um ministro, cheio de frio, à espera que ele saia. Acima de tudo um repórter tem que ser um jornalista. Um jornalista, basicamente, é aquele que conta novidades. Por isso é considerado o News Man. Para alguém ser repórter tem que contar tudo, estar muito atento e ver os ângulos que os outros não vêem. Enfim, tem que fazer muita análise e, sobretudo, ler muito, estar muito bem documentado, saber para onde vai, ter um mapa do sítio onde está e saber o mínimo da história do país para onde vai. Um jornalista tem de ser muito culto.

U@O- Actualmente o mercado de trabalho atravessa uma crise. Que conselhos dá aos futuros jornalistas?
E.F. -
Aconselho muito trabalho, muita paciência e calma mas, sobretudo, muita insistência, não desistir, ser muito persistente e ler muito. Acho que os recém licenciados saem completamente ingénuos das universidades. Por vezes não sabem onde estão nem onde vão parar. Têm que pedir colaborações porque o mercado de trabalho está muito mal. Têm que ter muita vontade. Ser jornalista não é um emprego, mas sim um trabalho. Isto tudo para quem quer ser realmente jornalista porque há aqueles que chegam à redacção, escrevem as noticias e como já têm contrato assinado não querem fazer mais nada.



A primeira experiência de guerra de Emídio Fernando foi na Bósnia Herzegovina



Perfil



Com apenas 35 anos de idade, Emídio Fernando é um dos nomes mais mediáticos do jornalismo radiofónico nacional. Licenciado em Sociologia, pela Universidade Nova de Lisboa, construiu a sua carreira profissional na rádio. Trabalha há 12 anos na TSF, colaborou no Expresso, no Tal e Qual e no Público. Foi docente no Instituto Politécnico da Guarda, onde leccionou a disciplina de Técnicas de Expressão Jornalística,
Casado com uma sérvia, é natural de Angola e veio para Portugal em 1983 com 15 anos.