A pérola do Al-Gharb





Silves















Por Nélia Sousa



Quem ao longe avista Silves vê-se transportado a uma cidade da África Oriental, cujos traços muçulmanos ainda estão bem presentes nas ruas estreitas, na arquitectura das casas e nas suas gentes. A cidade é testemunha de um passado profícuo e glorioso, refúgio de ilustres poetas islâmicos que divinamente a souberam elogiar. Ibn Mahfot (último senhor árabe do Algarve), Al-Mu'tamid (o maior poeta luso-árabe) ou ainda Ibn-Ammâr (governador de Silves, guerreiro, diplomata e poeta) são o exemplo da fama poética que Silves e a região algarvia gozam na história árabe. É principalmente aos árabes que a velha cidade algarvia deve as suas mais brilhantes e mais bem documentadas tradições históricas.
A velha Xelb dos árabes foi conquistada por Abd-al-Aziz em 713, tendo permanecido sob ocupação muçulmana até ao século XIII. Era considerada uma das mais importantes cidades do reino do Al-Faghar dos Almóadas e posteriormente de Portugal, caracterizada pelos seus sumptuosos palácios e pelas ruas preenchidas por bazares recheados de preciosidades orientais.
A conquista definitiva da cidade dá-se em 1242, ficando a dever-se a D. Paio Peres Correia, mestre da Ordem de Santiago. Acaba assim o período de grande esplendor e a cidade vai conhecendo, aos poucos, o sabor amargo da decadência que viria apenas a ser suplantada nos finais do século XIX/XX pelo incremento da indústria corticeira que a faz crescer económica e urbanisticamente. Mas também esta viria a declinar, provocada em parte pelo assoreamento do rio Arade, o mais importante curso de água que atravessa o Algarve logo a seguir ao Guadiana e, outrora, a principal rota de circulação comercial.
Na realidade visitar Silves é confrontar-se com diferentes períodos da História da Humanidade, daí que a nossa sugestão passe por conhecer a famosa cidade da Moura Encantada. Iniciemos, então, o nosso percurso.

A 'Bagdad do Ocidente'

Independentemente da via que tomar para chegar a Silves tenha como ponto de referência o rio Arade e a sua ponte de alvenaria com cinco arcos de construção muito antiga. Há quem atribua a sua origem aos romanos, outros há que dizem ser medieval. Seja qual for o período da sua construção, uma coisa é inegável, trata-se inquestionavelmente de um importante monumento e um dos atractivos da cidade. Em frente da ponte pode admirar a arquitectura das "Casas Grandes", um palácio em estilo neoclássico dos inícios do século XIX. Procure, agora, a Rua José Estevão. Logo à entrada depara-se com o Mercado Municipal. Se for em dia de sábado poderá apreciar as vastas quantidades de produtos frutícolas e hortícolas que as gentes das localidades vizinhas trazem para vender, desde amêndoas, figos às doces laranjas algarvias, não fosse esta a mais importante cidade produtora de citrinos do Algarve.
Siga, posteriormente, pela Rua 5 de Outubro, até chegar ao Pelourinho e às Portas da Cidade, também designadas de Portas de Loulé. Trata-se de uma enorme torre albarrã em grés, pedra-ruiva típica desta zona, e que já foi a antiga sede da Câmara Municipal. Suba as escadas até ao Torreão e admire a vista sobre a cidade. Actualmente encontra-se a funcionar nestas instalações a Biblioteca Municipal. Ao lado está o edifício dos Paços do Concelho.
Tome a direcção da Rua das Portas de Loulé e visite o Museu Municipal, construído em torno de um poço-cisterna, uma verdadeira jóia da engenharia hidráulica muçulmana dos séculos XII/XIII. O museu possui um riquíssimo espólio arqueológico resultado das escavações feitas na cidade e no castelo e que contempla as mais variadas épocas desde a pré-história, ao período romano, muçulmano e português. Suba a Rua da Sé, íngreme e estreita, e aprecie ao longo da caminhada as pequenas lojas de artesanato. Ao fundo encontra-se a Sé, antiga mesquita mourisca, cuja construção foi iniciada no século XIII. Foi Sé Catedral do Algarve até ao século XVI, altura em que a sede do bispado passou para Faro. A igreja, construída em pedra ruiva, apresenta o estilo gótico e barroco. O seu interior guarda alguns túmulos de bispos. Destaque-se o transepto, a capela-mor e as capelas terminais. Ao lado da Sé encontra-se a Igreja da Misericórdia com a sua curiosa porta em sóbrio estilo manuelino. Continue a subida em direcção ao próximo monumento que merece uma contemplação minuciosa pelo seu inigualável valor histórico.

Os encantos da Moura

No alto de uma colina ergue-se, imponente, o castelo onde se travaram importantes batalhas entre mouros e cristãos. Trata-se, sem dúvida, do melhor exemplar da arquitectura mourisca em Portugal, construído em grés vermelho e taipa. O castelo é um dos ex-líbris da cidade de Silves, aquela a que chamaram a 'Bagdad do Ocidente', e um dos castelos mais bem conservados do país. Foi um poderoso reduto dos romanos, mas coube aos Árabes embelezarem-no e darem-lhe maior valor bélico. Na parte norte do castelo encontra-se a Porta da Traição, assim designada porque por ela penetraram os homens de D. Paio Peres Correia aquando da tomada da cidade aos mouros. No seu interior encontram-se duas importantes cisternas que são das peças mais interessantes do próprio castelo e que serviram, outrora, para abastecimento da cidade - a Cisterna dos Cães e a Cisterna da Moura Encantada. A primeira é um poço profundo com mais de 40 metros de profundidade, onde foram descobertas cerâmicas medievais. Assim designada pelo facto de nela se terem atirado muitos cães vivos ou mortos, pois quando se procedeu ao desentulhamento foram encontrados inúmeros esqueletos destes animais. Há quem diga que esta enigmática cisterna permite a ligação ao rio. Por sua vez, o aljibe, ou a Cisterna da Moura Encantada, serviu para abastecimento de água à fortaleza. Diz a lenda que na noite de São João, pela meia-noite, se ouvem lamúrias de uma princesa moura que, num barco de prata com remos de ouro, aguarda a chegada de um príncipe de sua fé, a fim de que este pronuncie as palavras necessárias para a desencantar.
O castelo é constituído por onze torres, das quais duas são albarrãs. Guarda no seu interior uma estátua em bronze de D. Sancho I, primeiro conquistador da cidade aos mouros. Das suas ameias disfruta-se um lindíssimo panorama sobre toda a cidade, alargando-se pela serra de Monchique, não muito distante dali, e pelos cerros vizinhos. O ar que se respira é adocicado pelo perfume das amendoeiras, das figueiras, das laranjeiras e das estevas que por ali abundam.
Vários trabalhos arqueológicos continuam a ser efectuados no seu interior onde já foi descoberta uma habitação muçulmana que poderá ser o famoso Axarajibe ou Palácio das Varandas, uma magnífica construção palaciana comparada na poesia árabe às mais belas de Bagdad e que presume-se ter pertencido a Al-Mu'tamid.
Depois de visitar o castelo procure o Largo José Correia Lobo, depois a Rua Porta da Azóia e por fim entre na Rua D. Afonso III onde ao fundo está edificada a pequena ermida de Nossa Senhora dos Mártires com vestígios góticos no arco e no artezoado da capela-mor.
O próximo ponto de passagem deverá ser a Rua Cândido dos Reis onde se encontra o Teatro Mascarenhas Gregório, um edifício cultural construído pelo conhecido industrial corticeiro que lhe deu o nome nos finais do século XIX, início do século XX. Nesta rua foram edificadas grande parte das indústrias corticeiras da cidade, pois a principal indústria local era a corticeira, sobretudo na modalidade de fabrico de rolhas. A memória desses tempos áureos encontra-se viva na Fábrica do Inglês, um dos mais arrojados investimentos privados do Algarve que transformou uma antiga fábrica de cortiça num agradável empreendimento de cultura e de lazer. Restaurantes, cafés, tendas de espectáculos é tudo o que o visitante pode aqui encontrar a par do Museu da Cortiça, galardoado com o prémio Michellet para o melhor museu industrial da Europa, e que reúne testemunhos de inestimável valor sobre o passado industrial deste complexo. É neste espaço que se realiza todos os anos a famosa festa da cerveja, um potencial atractivo para centenas de bebedores de todo o país.
Depois da visita siga para nascente, como quem se desloca em direcção a São Bartolomeu de Messines, até encontrar a Cruz de Portugal, um cruzeiro quinhentista gótico-manuelino, datado do início do século XVI, em calcário esculpido e com aproximadamete três metros de altura. Numa das faces tem esculpida a Pietá, na outra Cristo crucificado. Depois volte atrás em direcção à Ponte Velha e pare na Praça Al-Mu'tamid, em homenagem ao grande rei-poeta árabe, nascido em Beja, e que governou Silves, tendo-lhe dedicado alguns dos seus magníficos poemas. Um espaço de descanso e lazer que faz relembrar um autêntico jardim árabe e com uma bela vista a norte para o castelo e a sul para o rio Arade.
Se a fome começar a apertar sugerimos-lhe alguns restaurantes que por ali proliferam, nomeadamente aqueles que se situam junto ao Mercado Municipal e que oferecem uma variedade de pratos típicos de peixe e que pode muito bem acompanhar com as típicas "Papas de Milho". Para a sobremesa sugerimos os famosos "Morgados de Silves". Finalizada a visita poderá optar por seguir viagem até Portimão, num dos vários barcos que, sempre que a maré permite, rumam a Silves cheios de turistas, e apreciar a beleza paisagística do Rio Arade, passando por lugares como o Mata-Mouros ou a ilha do Rosário. Se preferir ficar por Silves, damos-lhe duas alternativas: se gostar do campo, então a 8 km de Silves encontra o Centro Cinegético, localizado numa antiga escola primária, repleto de espécies da fauna nativa e exótica, designadamente veados, gamos javalis, patos e avestruzes que vivem por entre as matas de medronheiros selvagens e que lhe permite um contacto privilegiado com os animais e a Natureza; caso prefira não sair da velha urbe, opte por voltar à Fábrica do Inglês para apreciar a magia das Fontes Cibernéticas, que durante o dia assumem a forma de cascata e de parabólicas, permitindo ao visitante atravessá-las sem se molhar, e de noite são o palco do Aquavision - espectáculo multimédia único na Europa em que a história de Silves é contada através da projecção de diapositivos e de raios laser nas muralhas do castelo, ao som de música clássica.
Certamente que vale a pena disfrutar de um dia diferente numa das mais bonitas cidades algarvias e deixar de lado, por um dia, a famosa praia que o turista teima em não querer desperdiçar.
Finalizado o percurso por esta cidade do barrocal algarvio, só podemos tirar uma simples conclusão: a Silves chega-se com a vontade de tudo conhecer e abala-se com a certeza de brevemente querer voltar.


.