Por Andreia Ferreira



"A construção da paz deve ser o primeiro ditame da construção da nossa felicidade"

Urbi et Orbi- Acha pertinente falar sobre a morte?
Moita Flores-
Há uma tendência para a anulação de tudo o que é a materialização e objectivação de que os mortos existem, para a anulação da ideia da morte. Mas ela é tão poderosa que por mais que seja negada, invade os interstícios por onde a fizemos desaparecer, ressurgindo com mais força e vigor. Basta pensarmos que quanto mais procuramos anular a ideia da morte, mais somos confrontados com novas doenças, portanto a morte ressurge sempre, o que significa que isto é um debate inacabado e interminável, até porque é interminável a nossa interpelação sobre as finalidades da existência.

U@O - E a sua presença nas Jornadas Estética da Morte, em que medida se justifica?
M.F.-
Devido à minha vida profissional e académica. Eu conheço a metáfora da morte por fora e por dentro, conheço os aspectos do espectáculo e da
representação cénica. O facto de conhecer o que se passa no subsolo, na decomposição irreversível dos corpos, permite interpelar-me, interpelando os outros, sobre algumas das significações que damos ao nosso percurso existencial, numa perspectiva sociológica, histórica e antropológica.

U@O - O que o fascina na morte?
M.F.-
Foi influência da profissão que tive. Lidei demasiado com a morte,
sobretudo com mortos, quando era polícia. Foi assim que começaram as
interrogações associadas à autópsia e à prática judiciária e também à
representação simbólica do ponto de vista das famílias.
Mais tarde, quando enveredei pela vida académica, comecei a estudar o tema na perspectiva da violência e da morte violenta.

U@O - Concluiu alguma coisa?
M.F.-
Descobri que a morte é sempre violenta. Há um assassinato sempre que alguém morre e sentimos isso com toda a violência, como uma amputação. Foi daí que surgiu o interesse pela morte, no contexto da criminalidade. Mas, o que verdadeiramente me atrai é a vida e a paixão pela vida, que talvez tenha nascido por ter visto tantos mortos.

U@O - Já que veio falar principalmente de cemitérios, haverá uma
tendência para a diminuição dos cemitérios ou a alteração do ritual funerário?
M.F.-
Pode haver alterações do ponto de vista do cemitério romântico tal como o conhecemos, mas esses desvios não corresponderão nunca à anulação absoluta dos cemitérios e de toda a prática cemiterial.

U@O - Está a aumentar a cremação...
M.F.-
Está a crescer a cremação em Portugal, mas não é isso que faz, nem tem feito, com que outros cemitérios não se multipliquem e as influências não se interpenetrem de cemitério para cemitério onde a base romântica e judaico-cristã é prevalecente. E isto é um dado que permanecerá imutável durante décadas, para não dizer séculos.

U@O - Mesmo num assunto sério como a morte, muita gente vive de
aparências e vai ao cemitério no Dia dos Finados, porque toda a gente vai. Há também o carácter consumista, visível no aumento do preço das flores. O que lhe parece?
M.F.-
Sobretudo nas cidades, nas grandes cidades. Aí a lógica mercantil e
economicista prevalece, claramente. No território que não o das grandes cidades, o Dia dos Finados continua a ser um culto dos mortos levado a preceito. É considerado um dia de evocação, introspecção e recordação dos mortos.




"Realizei um sonho de menino"

U@O - De todas as actividades que tem, qual prefere?
M.F.-
Eu só tenho duas actividades, escrevo ficção e investigo. No campo da investigação dou aulas, no campo ficcional escrevo livros, filmes e argumentos para televisão.

U@O - Desde sempre teve a certeza que era isto que queria fazer?
M.F.-
Na 4ª classe a minha professora perguntou-nos o que queríamos ser quando fossemos grandes. Eu disse polícia e escritor e ela gozou-me por ter pedido duas profissões. Afinal de contas segui as duas profissões e do ponto de vista espiritual, realizei um sonho de menino.

U@O - A experiência na Polícia Judiciária influenciou a sua vida?
M.F.-
Sim, quem passa pelo sofrimento como eu passei e conhece o sofrimento dos outros e até o nosso próprio sofrimento, dá outro significado à vida, ao respeito e à tolerância para com os outros. Condiciona a nossa vida, a nossa profissão e a nossa maneira de entender o mundo.

U@O - Como vê a actuação da polícia em casos como o da Casa Pia e o da
Fátima Felgueiras?
M.F.-
No caso Casa Pia os processos estão em segredo de justiça e nós não os conhecemos, portanto sobre isso ainda é cedo para saber.
No caso Fátima Felgueiras há, de facto, um excesso de desleixo. O que está em causa é o problema das fugas de informação e da violação do segredo de justiça, portanto não estamos perante um problema de polícia, mas sim de um instrumento jurídico mal aproveitado. É a forma de alguns gerirem o seu poder pessoal no sistema judiciário e sobre isso, eu sou contra. A justiça tem que ser igual para todos de acordo com a Instituição.

U@O - Fale-me um pouco do seu último livro "Não há lugar para divorciadas".
M.F.-
É uma paródia sobre a irracionalidade da guerra, sobre o discurso falso e hipócrita que inventamos para legitimar a dominação de povos. E quem conhece a morte, ou pelo menos conhece os mortos e a dor dos vivos face à morte percebe que, quer em Portugal, quer em qualquer parte do mundo, quem brinca com a guerra é idiota e a idiotice não pode ser levada a sério. Temos que nos rir dela e "Não há lugar para divorciadas" fala da imbecilidade e idiotice da guerra.

U@O - É, portanto, contra a Guerra?
M.F.-
Eu sou contra a guerra, não é contra a guerra do Bush, eu sou contra a guerra com maiúsculas. Nem acho que há guerras legítimas ou ilegítimas. Não pode haver guerra. A construção da paz deve ser o primeiro ditame da construção da nossa felicidade.

U@O - É mais fácil ver o seu trabalho reconhecido em livro ou em
televisão?
M.F.-
Eu sou um autor com sorte, os meus livros vendem bem. É mais gratificante escrever em livro do que para televisão. Na televisão estamos sempre em processos de auto-censura, a pensar nas audiências e no universo das pessoas que nos estão a ver. Em livro a liberdade é absoluta.
A vantagem da televisão é que chega a muita gente.

U@O - Quais os seus projectos futuros?
M.F.-
Neste momento estou parado no que respeita à televisão. Tenho-me dedicado mais à prosa. Segunda feira [ontem, 19 de Maio] saiu o livro "Não há lugar para divorciadas" e a reedição dos meus últimos quatro livros. Brevemente vai sair um livro sobre crianças marginais.


História de um polícia escritor



Francisco Moita Flores, nasceu no ano de 1953 em Moura.
É licenciado em História, pós-graduado em criminologia e doutorado pelo Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi o responsável pela trasladação dos mortos do cemitério da Aldeia da Luz.
Durante 12 anos foi agente da Polícia Judiciária, o que lhe proporcionou inúmeras experiências e inspiração para as suas obras de ficção, sendo algumas delas adaptadas para televisão. É, desde 1989, docente universitário e de momento é também o director do Centro de Estudos de Ciências Forenses.
Segunda feira, 19 de Maio, saiu o seu mais recente trabalho escrito "Não há lugar para divorciadas". Deslocou-se à UBI para falar sobre a morte.