Urbi et Orbi- Acha pertinente falar sobre a morte?
Moita Flores- Há uma tendência para a anulação
de tudo o que é a materialização e objectivação
de que os mortos existem, para a anulação da ideia da morte. Mas
ela é tão poderosa que por mais que seja negada, invade os interstícios
por onde a fizemos desaparecer, ressurgindo com mais força e vigor. Basta
pensarmos que quanto mais procuramos anular a ideia da morte, mais somos confrontados
com novas doenças, portanto a morte ressurge sempre, o que significa que
isto é um debate inacabado e interminável, até porque é
interminável a nossa interpelação sobre as finalidades da
existência.
U@O - E a sua presença nas Jornadas Estética da Morte, em que
medida se justifica?
M.F.- Devido à minha vida profissional e académica. Eu conheço
a metáfora da morte por fora e por dentro, conheço os aspectos do
espectáculo e da
representação cénica. O facto de conhecer o que se passa
no subsolo, na decomposição irreversível dos corpos, permite
interpelar-me, interpelando os outros, sobre algumas das significações
que damos ao nosso percurso existencial, numa perspectiva sociológica,
histórica e antropológica.
U@O - O que o fascina na morte?
M.F.- Foi influência da profissão que tive. Lidei demasiado com
a morte,
sobretudo com mortos, quando era polícia. Foi assim que começaram
as
interrogações associadas à autópsia e à prática
judiciária e também à
representação simbólica do ponto de vista das famílias.
Mais tarde, quando enveredei pela vida académica, comecei a estudar o tema
na perspectiva da violência e da morte violenta.
U@O - Concluiu alguma coisa?
M.F.- Descobri que a morte é sempre violenta. Há um assassinato
sempre que alguém morre e sentimos isso com toda a violência, como
uma amputação. Foi daí que surgiu o interesse pela morte,
no contexto da criminalidade. Mas, o que verdadeiramente me atrai é a vida
e a paixão pela vida, que talvez tenha nascido por ter visto tantos mortos.
U@O - Já que veio falar principalmente de cemitérios, haverá
uma
tendência para a diminuição dos cemitérios ou a alteração
do ritual funerário?
M.F.- Pode haver alterações do ponto de vista do cemitério
romântico tal como o conhecemos, mas esses desvios não corresponderão
nunca à anulação absoluta dos cemitérios e de toda
a prática cemiterial.
U@O - Está a aumentar a cremação...
M.F.- Está a crescer a cremação em Portugal, mas não
é isso que faz, nem tem feito, com que outros cemitérios não
se multipliquem e as influências não se interpenetrem de cemitério
para cemitério onde a base romântica e judaico-cristã é
prevalecente. E isto é um dado que permanecerá imutável durante
décadas, para não dizer séculos.
U@O - Mesmo num assunto sério como a morte, muita gente vive de
aparências e vai ao cemitério no Dia dos Finados, porque toda a gente
vai. Há também o carácter consumista, visível no aumento
do preço das flores. O que lhe parece?
M.F.- Sobretudo nas cidades, nas grandes cidades. Aí a lógica
mercantil e
economicista prevalece, claramente. No território que não o das
grandes cidades, o Dia dos Finados continua a ser um culto dos mortos levado a
preceito. É considerado um dia de evocação, introspecção
e recordação dos mortos.
"É mais gratificante escrever em livro
do que para televisão"
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"Realizei um sonho de menino"
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U@O - De todas as actividades que tem, qual prefere?
M.F.- Eu só tenho duas actividades, escrevo ficção e
investigo. No campo da investigação dou aulas, no campo ficcional
escrevo livros, filmes e argumentos para televisão.
U@O - Desde sempre teve a certeza que era isto que queria fazer?
M.F.- Na 4ª classe a minha professora perguntou-nos o que queríamos
ser quando fossemos grandes. Eu disse polícia e escritor e ela gozou-me
por ter pedido duas profissões. Afinal de contas segui as duas profissões
e do ponto de vista espiritual, realizei um sonho de menino.
U@O - A experiência na Polícia Judiciária influenciou
a sua vida?
M.F.- Sim, quem passa pelo sofrimento como eu passei e conhece o sofrimento
dos outros e até o nosso próprio sofrimento, dá outro significado
à vida, ao respeito e à tolerância para com os outros. Condiciona
a nossa vida, a nossa profissão e a nossa maneira de entender o mundo.
U@O - Como vê a actuação da polícia em casos como
o da Casa Pia e o da
Fátima Felgueiras?
M.F.- No caso Casa Pia os processos estão em segredo de justiça
e nós não os conhecemos, portanto sobre isso ainda é cedo
para saber.
No caso Fátima Felgueiras há, de facto, um excesso de desleixo.
O que está em causa é o problema das fugas de informação
e da violação do segredo de justiça, portanto não
estamos perante um problema de polícia, mas sim de um instrumento jurídico
mal aproveitado. É a forma de alguns gerirem o seu poder pessoal no sistema
judiciário e sobre isso, eu sou contra. A justiça tem que ser igual
para todos de acordo com a Instituição.
U@O - Fale-me um pouco do seu último livro "Não há
lugar para divorciadas".
M.F.- É uma paródia sobre a irracionalidade da guerra, sobre
o discurso falso e hipócrita que inventamos para legitimar a dominação
de povos. E quem conhece a morte, ou pelo menos conhece os mortos e a dor dos
vivos face à morte percebe que, quer em Portugal, quer em qualquer parte
do mundo, quem brinca com a guerra é idiota e a idiotice não pode
ser levada a sério. Temos que nos rir dela e "Não há
lugar para divorciadas" fala da imbecilidade e idiotice da guerra.
U@O - É, portanto, contra a Guerra?
M.F.- Eu sou contra a guerra, não é contra a guerra do Bush,
eu sou contra a guerra com maiúsculas. Nem acho que há guerras legítimas
ou ilegítimas. Não pode haver guerra. A construção
da paz deve ser o primeiro ditame da construção da nossa felicidade.
U@O - É mais fácil ver o seu trabalho reconhecido em livro ou
em
televisão?
M.F.- Eu sou um autor com sorte, os meus livros vendem bem. É mais
gratificante escrever em livro do que para televisão. Na televisão
estamos sempre em processos de auto-censura, a pensar nas audiências e no
universo das pessoas que nos estão a ver. Em livro a liberdade é
absoluta.
A vantagem da televisão é que chega a muita gente.
U@O - Quais os seus projectos futuros?
M.F.- Neste momento estou parado no que respeita à televisão.
Tenho-me dedicado mais à prosa. Segunda feira [ontem, 19 de Maio] saiu
o livro "Não há lugar para divorciadas" e a reedição
dos meus últimos quatro livros. Brevemente vai sair um livro sobre crianças
marginais.
História de um
polícia escritor
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Francisco Moita Flores, nasceu no ano de 1953 em Moura.
É licenciado em História, pós-graduado em criminologia
e doutorado pelo Instituto de História e Teoria das Ideias
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi o responsável
pela trasladação dos mortos do cemitério da
Aldeia da Luz.
Durante
12 anos foi agente da Polícia Judiciária, o que lhe
proporcionou inúmeras experiências e inspiração
para as suas obras de ficção, sendo algumas delas
adaptadas para televisão. É, desde 1989, docente universitário
e de momento é também o director do Centro de Estudos
de Ciências Forenses.
Segunda feira, 19 de Maio, saiu o seu mais recente trabalho escrito
"Não há lugar para divorciadas". Deslocou-se
à UBI para falar sobre a morte.
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