José Geraldes
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O grito da cruz
Anunciar o Cristianismo sem a cruz mutila os evangelhos e vai contra todos os seus
princípios
Jesus, o Homem-Deus, que passou a vida a fazer somente
o bem, é condenado à morte numa cruz. Eis o mistério que
milhões e milhões de homens e mulheres, passados 2 mil anos, celebram
em Sexta-Feira Santa.
A cruz era o suplício reservado aos maiores criminosos daquele tempo.
A propósito, o escritor romano Cícero, no séc. I antes de
Cristo, escreve que se tratava de "uma condenação da qual o
próprio nome deve ser afastado não só da pessoa dos cidadãos
romanos mas também dos seus pensamentos, dos seus olhos, dos seus ouvidos."
O horror à cruz era tal que, nos primeiros três séculos, os
cristãos, por um certo pudor, identificavam a sua fé pelos símbolos
da âncora, do peixe, do pescador e do pastor.
O teólogo Lagrange explicará, nos tempos modernos, que os primeiros
cristãos tinham horror à representação de Jesus na
cruz pelo facto de terem visto com os seus próprios olhos aqueles pobres
corpos sangrando, completamente nus, aniquilados sob o seu próprio peso,
numa agitação contínua das cabeças.
O réu, esgotado pelas torturas, com sede a arder-lhe na boca, clamava pela
morte com horríveis e inarticulados gritos.
A partir do séc. IV, d.C., a cruz torna-se o grande símbolo dos
cristãos. E poetas, pintores, escultores imortalizam-na em obras primas
de arte. O Cristo Crucificado passa a ser a expressão da fé dos
crentes e um sinal de referência histórica para quem não acredita.
Por isso, querer apresentar-se como cristão sem uma identificação
com a cruz é um contra-senso. Toda a fé cristã começa
e acaba em Cristo Crucificado. Anunciar o cristianismo sem a cruz mutila os evangelhos
e vai contra todos seus princípios. Paulo de Tarso escreverá aos
Coríntios : "Pregamos um Cristo Crucificado, escândalo para
os judeus e loucura para os pagãos."
Sempre houve a tentação que, hoje, continua a existir, de marginalizar
a cruz para reduzir a mensagem de Jesus a uma simples revolução
política. Ou então a um mero sentimentalismo.
A cruz deixa de ser um escândalo. E passa a figurar como um adorno que nada
significa. González Faus di-lo, de forma eloquente: "À força
de dizer que a cruz não comunica resignação, corre-se o risco
de converter a sua necessidade histórica numa necessidade meramente acidental
ou circunstancial". Ora a cruz está no centro de toda a vida cristã.
Quem a recusar, limita-se a uma prática de humanismo simpático.
Mas que fica longe do verdadeiro Cristo dos Evangelhos.
Mateus cita incisivamente : "Se algum de vós quer vir após
Mim, que renuncie a si mesmo, pegue na sua cruz e siga-me.(...) Quem não
pegar na sua cruz e Me seguir, não é digno de Mim".
A cruz implica dor mas comunica amor. Ou como diz a liturgia de Sexta-Feira Santa,
"pela Cruz veio a alegria ao mundo inteiro". Alegria que atingirá
o apogeu com a Ressurreição.
Mas foi o grito do último suspiro do alto da cruz , às três
horas da tarde daquela Sexta-Feira única, que nos anunciou a madrugada
do mundo novo.
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