Era dirigente do Partido Comunista Português
(PCP) na área do Tortosendo. Motivo suficiente para o seu nome estar no topo
da lista da polícia política do regime salazarista, a PIDE. Alfredo
Craveiro recorda hoje com alguma nostalgia esses tempos de lutas contra a ditadura
e da criação de um dos mais importantes núcleos portugueses
do PC.
Sentado numa pequena secretária da sede da Liga dos Amigos do Tortosendo
(LAT), vai passando para o computador alguns textos que escreve. O seu local de
trabalho, diz entre um sorriso. No boletim trimestral daquela organização
escreve sobre ao conflito no Médio Oriente, sobre a fome nos países
subdesenvolvidos e também sobre o 25 de Abril.
Este septuagenário lembra com clareza as muitas vezes que pintou os murais
das fábricas com palavras de ordem. "Abaixo o Salazar", "Fim
ao regime", mensagens "curtas e simples", sublinha o antigo tecelão.
Obras espontâneas que "muitas vezes tivemos de deixar a meio", acrescenta.
Os dedos já não têm a mesma destreza, mas ainda conseguem traçar
no ar os movimentos do pincel.
Na calada da noite, três ou quatro camaradas "encontravam-se no local
combinado", avança Alfredo Craveiro. Vigilantes e com mil cuidados,
rabiscavam incentivos à greve, revoltas ao Governo do Estado Novo e pedidos
de maior liberdade. Frases que já não existem. Duravam pouco mais
de meia dúzia de dias. "Vinha a polícia e pintava tudo de branco",
recorda este tecelão de pseudónimo "Miguel".
Seguidor da ideologia comunista, este operário que aprendeu francês
ao ler as revistas da UNESCO, confessa alguns dissabores que as suas acções
lhe trouxeram. "Os anos de 1946 e 1963 foram os mais terríveis",
relembra Craveiro. Nessas alturas, os panfletos e jornais políticos escasseavam
e "era preciso convocar os trabalhadores para a greve no 1 de Maio", conta.
A vila fica rodeada de agentes da PIDE e GNR, um facto que provoca o medo entre
a classe operária. Sem outra forma de "puxar a malta para o protesto",
o antigo dirigente comunista acrescenta que teve de arriscar. "Numa noite fomos
cinco ou seis pintar os muros e árvores junto das fábricas",
conta. Interpelados por agentes da autoridade, foram quase todos presos.
"Palavras que serviram para acordar muitas pessoas", acrescenta. A liberdade
de hoje não existia antes de 1974. "Já não é preciso
escrever palavras de ordem a mostrar aquilo que nos faziam", sublinha.
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Os grafittis de hoje acabam por esconder algumas palavras escritas em tempos
da revolução
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O pequeno Fiat 127 percorre espaçadamente a estrada que liga o Tortosendo
a Unhais da Serra. A noite vai alta e nem sinais de pessoas ou outros automóveis.
Condições necessárias para levar avante o propósito
que fez ir até ali dois indivíduos.
Ao volante está "Cartas", o pseudónimo de um homem que
aos 75 anos de idade está algo arrependido de ter lutado por uma "democracia
utópica".
Mesmo hoje, "não convém revelar o meu nome", avança.
Sustenta que ainda sofre alguns dissabores por ter defendido o Movimento das Forças
Armadas (MFA).
Quando espalhava siglas, palavras e frases, tinha por acompanhante um camarada
que saía do veículo, todas as vezes que encontrava um arvoredo de
maior porte ou um muro de fábrica onde coubesse uma frase.
"MFA, MFA, MFA, era assim até se acabar a tinta", revela "Cartas".
Desenhos reivindicativos onde se mostrava o que não se podia dizer.
No seu relato há alusão à tinta vermelha e aos muitos plátanos
e salgueiros das estradas de ligação ao Tortosendo. Durante a noite,
nas longas madrugadas do "verão quente", pintavam também
as faixas de rodagem. Locais onde, pela manhã, haveriam de passar os operários
a caminho das fábricas de lanifícios.
Um período de transição nada fácil, no entender de
"Cartas". Os cabelos brancos, "muitos ganhos nessas aventuras",
reforçam-lhe agora a autoridade na matéria. Logo após a Revolução
dos Cravos "ainda existia muito medo de dizer aquilo que se queria",
explica. Na névoa de fumo, resultante do rebentamento do regime, apareceram
uma infinidade de partidos e movimentos políticos. "Aqui nesta zona
persistiam os de esquerda, principalmente o Partido Comunista Português
(PCP)", relata.
Assistiu às ocupações da Quinta da Várzea e a tentativas
frustradas em outras propriedades. Via descambar aquilo por que tinham lutado.
"a liberdade não era aquilo, por isso defendia a calma e a filosofia
do Movimento", conta.
Às designações de PCP ou de MRPP juntam-se também,
durante a conversa, a LUAR e as FUP. Um grande conjunto de ideologias que pintavam
nas paredes gritos mudos a chamar a atenção de um povo de operários
que saía da ditadura. Uma multiplicidade de temas passaram pelas paredes
de fábricas, oficinas, murais, árvores e estradas. Desde o apelo
à queda dos Governos Provisórios até à implementação
da Reforma Agrária, estes escritos serviam fins diversos.
"Muitas destas frases que ainda se vêem por aí, serviram para
elucidar aos menos precavidos, serviram de berros quando não se podia sequer
falar", afirma "Cartas", responsável por algumas delas.
Actualmente mostra alguma tristeza por ver desaparecer as últimas. Escondem-se
já na tinta velha de pavilhões em ruínas, de fábricas
encerradas e de grafittis com cores berrantes e formas mais apelativas.
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