Anabela Gradim

A paz é possível


Criou-se uma estranha dicotomia no espaço público - ou deverei dizer mediático? - português, que teve a sua origem na retórica bélica norte americana, mas foi amorosamente apropriada pelos opinion makers lusos, que dela fazem dogma. A visão maniqueísta, cara à infância, ignora a complexidade, que só desabrocha com o desenvolvimento da abstracção e do poder reflexivo. E assim se exprime: quem não é por nós, é contra nós. Quem tem dúvidas quanto à oportunidade e necessidade de uma guerra contra o Iraque (como se uma guerra pudesse alguma vez ser oportuna, e não fosse, desde logo, uma derrota do homem), é a favor do terrorismo internacional, islâmico em particular, e só pode ser um perigoso ressentido contra o ocidente. Perigoso, e ingrato, acrescente-se, já que foi esse mesmo ocidente que o alimentou e protegeu, garantindo até luxos perfeitamente supérfluos como o direito à expressão livre. E esta é a mensagem que, aberta ou subrepticiamente, povoa a retórica belicista de muitos comentadores. Os quais, embora valentes como leões, dada a sua provecta idade dificilmente serão chamados a pegar em armas. Nem eles nem os seus. Basta vermos quem há umas décadas "fazia o ultramar", e quem estava "bem muito obrigado", para se perceber que as guerras são ideal altamente inspirador, idealmente claro. O povo, com sabedoria, caracteriza os valentes de bancada dizendo que "matam sete e enterram oito", e parece-me apropriado.
Reflecte esta dicotomia o real? Por toda a parte se intensificam as manifestações contra a guerra, e vindas dos mais insuspeitos quadrantes. Era impressionante o mar de gente nas manifestações das capitais europeias, especialmente naquelas onde os governos se manifestaram a favor da guerra. A Covilhã não foi excepção. Manifestação e vigília tiveram assinalável sucesso. E vermos o PCP, a AAUBI e a Igreja Católica defendendo a mesma causa não é comum. Tanta dissonância devia pelo menos fazer com que todos, sem excepção, questionassem honestamente as suas crenças, porque, seguindo um princípio nada cartesiano, de tanta divisão e tanta dúvida alguma causa há-de haver. Admito que as motivações franco-alemãs não sejam lá muito nobres: economicamente a Europa tem muito a perder com esta guerra - aliás, tal como sucedeu no Kosovo -, que para os EUA representará, de acordo com as previsões dos próprios americanos, o descolar da economia, e um crescimento, no mínimo, de 2,5% ao ano. E se o motivo europeu é apenas proteccionista, o americano será o reverso disso, mais os mortos.
Há lugar para a esperança quando vemos manifestações civis por esse ocidente fora, e mais ainda quando se constata que a maioria da opinião pública norte americana é contra uma acção unilateral. E também não me sinto culpada por não perceber a "oportunidade" de uma guerra contra um país claramente de joelhos - guerra que se sabe como começa, mas ninguém pode prever como acabará. Parafraseando esse perigoso agente da extrema esquerda infiltrado no Vaticano, o Papa João Paulo II, a paz é possível, a guerra não é inevitável, e muitos covilhanenses também pensam assim.