Urbi @ Orbi - A Bíblia reconhece um desafiador de Deus junto do Homem.
Será uma expressão para afirmar a supremacia de Deus, frente à
realidade do mal?
Vasco Pinto de Magalhães - Bem, não creio que a intenção
seja essa. É uma consciência de uma cultura que se sente frequentemente
ultrapassada e desafiada e a pôr em causa não só o seu próprio
caminho e as suas convicções, como a própria ideia de Deus.
Mas não é Deus que impõe nem que pede, porque isso já
é um Deus demasiado terreno. Repare, a concepção bíblica
de Deus do Antigo Testamento não é a do Novo Testamento, nem sequer
é aquela que hoje já é mais trabalhada. Tudo depende da noção
e da imagem que nós temos de Deus. Jesus Cristo vem-nos revelar um rosto
novo de Deus e Ele não precisa de ninguém para se confrontar, não
precisa de uma outra presença, mas de alertar as pessoas para aquilo que
Ele chamou mundo, e os poderes do mundo estruturado ou não, ou mais individuais
ou mais colectivos, portanto, é o próprio Homem que se pode organizar
de uma forma fechada e auto-suficiente. Neste sentido, o Homem fechado em si próprio
opõe-se a um caminho de libertação e com o perigo de ser
exactamente o contrário.
U@O - Este fechamento do homem, não o coloca numa situação
de vulnerabilidade, transformando-o num ser egoísta e maligno?
VPM - Creio que não. O Ser vulnerável não é
o Ser maligno. O Homem torna-se maligno, na medida em que usa mal a sua liberdade
e endeusa a realidade sem a substituição de um Deus de amor, quando
põe a sua confiança, por exemplo, no bem estar e no dinheiro. O
que é importante ao serviço da humanidade não pode ser o
trono donde eu espero a felicidade. Não é o Homem que na sua fragilidade
se opõe a Deus, porque a fragilidade pode ser até uma ocasião
de sentir a Deus. É, quando não sabendo encontrar o caminho por
aí, na tentação do orgulho constrói realidades, Torres
de Babel, estruturas ou comunidades que se pensem auto-suficientes, então,
é o Homem no seu engano de auto-suficiência que se opõe a
Deus, não é o homem na sua fragilidade.
U@O - Não será esta fragilidade o caminho propício para
a manipulação do Homem?
VPM - É verdade que todos os poderes, se apanham um homem mal formado,
com pouca consciência crítica, vão usá-lo e manipulá-lo.
Vemos como a política, por exemplo, mal usada é Satanás,
porque é uma estrutura muitas vezes anónima, mas com algum rosto
pessoal que me pode manipular. Na minha fragilidade de segurança podem-me
começar a oferecer dinheiro, por um lado benesse, e por outro lado para
fazer de mim um escravo. Orwell explica isso muito bem, nesta coisa que hoje damos
uma volta esquisita, com este Big Brother. Desde 1984, explica isso: como é
que um poder que até parece estar ao serviço dos outros, porque
dá bem estar e dinheiro a toda gente e justiça, faz do Homem um
escravo do poder. Todos os grandes ditadores quiseram ter o homem como um carneirinho,
à sua disposição, desde que renunciasse a pensar. Ora, isto
é maior das manipulações, o Diabo é isto, é
uma figura mítica, é uma estrutura que parece boa e que até
resolve imediatamente os problemas, mas com o preço de diminuir o Homem.
"Deus organiza o Caos em Cosmos"
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"As religiões primitivas criaram as suas mitologias como forças
de compensação"
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U@O - O homem tem muitas vezes uma relação de conveniência
com Deus. Ou seja, invoca-o no seu estado de aflição. Não
será esta mitologia uma forma para explicar a sua desvinculação
com Deus, pelo facto de não ter recebido nenhuma recompensa de algo que
estava à espera?
VPM - É verdade, e por isso as religiões primitivas, e sem
fazer juízos errados, só fazem parte do caminho. É como a
criança, envolta nos seus fantasmas e nas suas ideias. Mas ela depois tem
que crescer, e as religiões primitivas, respeitando-as enquanto tal, não
é necessário ficarem sempre primitivas. Evidentemente que criaram
as suas mitologias como forças de compensação, sonhando e
projectando, à semelhança da alegoria da caverna de Platão,
mas também de outros mitos babilónios, que no fundo eram formas
de projecção que aparentemente libertavam o homem. Agora, Jesus
Cristo exactamente desmitifica e desfataliza a história dizendo: cuidado
com esses deuses que se vão virar contra ti, tu não te faças
Deus com a intenção, por exemplo, de Nietzsche. Descobre que Deus
é amor e então estás a caminho, não de um Deus do
poder, mas de um instrumento do amor que diviniza e transforma o Universo.
U@O - O Demónio é também conhecido por Lúcifer.
Podia descrever esta figura?
VPM - Quer dizer o fazedor de luz ou a falsa luz, ou a luz aparente, e
que era um título dado ao Imperador ou Rei da Babilónia. Realmente
era um poder muito enganador, despótico e dominador. Ele tomava para si
esse título, simbolicamente chamando Lúcifer todos as formas de
poder enganadoras, que são luzes falsas que a curto prazo se desmontam.
U@O - Temos algumas luzes falsas na sociedade portuguesa?
VPM - Temos. Sem estar aqui agora apontar o dedo a ninguém, porque
todos nós temos uma costelazita disso. Quando isso se organiza em estrutura
de poder, podemos dizer que há ali uma participação nesse
mistério de iniquidade, a realidade do mal, isto é, daquilo que
desumaniza, organizada como uma estrutura. Praticamente todos os estados humanos
têm uma costela disso, e se não estão atentos, muito facilmente
começam a justificar a violência, a corrupção e a mentira,
ainda que em nome de uma grande causa. É um poder luciferino, é
uma falsa luz, que está a resolver um problema no imediato, mas está
deixar o homem inferiorizado e menor. Se olharmos de uma ponta à outra
no mapa, vemos que isso existe. Não quer dizer que seja por opção,
mas que é preciso desmascarar. Não foi uma opção,
foi não estar atento, e não perceber que se não se estiver
atento cai-se nisso.
"A grande queda é a da pessoa empoleirada, que com muito poder
pode dar estoiros muito graves"
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"As pessoas que pedem a eutanásia é porque se sentem
sós"
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U@O - Falou na queda de uma luz. Está a parafrasear o dito popular
de que "quanto mais alto se sobe maior é a queda"? Que comentário
lhe merece esta metáfora?
VPM - Significa que quem está muito em exposição,
e em situações de muita altura, está mais fragilizado e mais
facilmente se pode enganar a si próprio. Pensar, bom, para este poder manter
a paz justifica-se o terrorismo. Em nome de alguma justiça atacaram-se
as torres gémeas. Em nome de uma ideia de justiça se pretende destruir
o Iraque. Em nome da justiça se deitou a bomba na Hiroxima, e portanto
tudo isso foi feito em nome de um bem: agora um bem enganador, porque nenhum bom
fim pode justificar um mau meio. Isso que é a grande queda, é aquela
pessoa empoleirada que com muito poder pode dar estoiros muito graves. E, a mensagem
de Jesus Cristo é esta: ninguém pense que está seguro, porque
diante de Cristo ele vê cair todos estes poderes. É que eles não
se mantêm diante de Deus.
U@O - Poderá Deus como Ser Omnipotente, perante este cenário
da maldição do poder humano, impedir que a humanidade caia num grande
caos?
VPM - Não há maldição. Há uma condição
evolutiva da humanidade que precisa de caminhar. Não há maldição,
porque não há uma predestinação. É a condição
humana que é imperfeita, com possibilidade de se enganar, usando mal a
sua liberdade, mas o maldito é bendito ou abençoado, e Deus o que
faz é abençoar. Abençoar não é refazer os problemas,
é transmitir-lhe a força que põe a humanidade a caminhar
para o bem. Portanto o papel de Deus é inspirar a pessoa humana para que
saia das situações caóticas. Deus é aquele que organiza
o caos em cosmos e não é um dono, é um espírito de
amor que organiza aquilo que está disperso numa realidade de comunhão,
do caos disperso faz o cosmos, que é a beleza. Não o faz de forma
prepotente, mas introduzindo um espírito de amor e portanto o homem também
não é maldito, mas co-autor da beleza.
U@O - Como é que vê a fé cristã em Portugal enquanto
sacerdote?
VPM - Vejo-a purificada em muitas instâncias. Vejo um grande desafio
de reconhecimento de que afinal a fé não é um fideísmo
de um Deus lá em cima. Afinal a fé que hoje a igreja pretende transmitir
é a convicção de que o homem está salvo, tem futuro,
e que a vida vale a pena, porque foi isso que Jesus Cristo veio dizer: a fé
é a convicção que o mundo, com o cristianismo, é melhor
e mais humano, de que o bem está ao nosso alcance. A fé do povo
português está numa grande fase de transição que precisa
de muita formação. Há também muitos aliciantes, existe
a ideia de que há uma grande perda de fé, mas o que eu acho é
que há uma grande crise e não é má, porque há
um certo cansaço de uma fé fideísta estruturada e infantil,
e à medida que as pessoas procuram uma fé mais adulta, há
riscos. Mas acho que isso acontece porque estamos atravessar um momento de crise,
mas não um momento de negatividade.
U@O - O senhor é membro-fundador do Centro de Estudos de Bioética.
Qual é a leitura que faz dos problemas morais que a evolução
da ciência suscita, sobretudo neste campo?
VPM - Os grandes desafios são os desafios éticos em relação
à vida e à tentação enorme do poder e da ciência
de manipularem a vida, de servirem a vida. A Bioética tenta que a ciência
não manipule a vida desumanizando, mas que esteja ao serviço da
vida, e de mais vida, e de uma vida mais humana. Agora, há uma grande tentação,
por razões de dinheiro, por interesse, por razões até ideológicas,
de usar a técnica e a ciência oprimindo a pessoa ou manipulando-a.
Não é necessário que assim seja, a Bioética seria
a ciência que tornaria a técnica e o saber ao serviço do homem
mais humano.
U@O - Qual é a sua posição sobre a eutanásia?
VPM - É um falso problema, porque ninguém tem o direito
sobre a vida do outro e é falso que a pessoa tenha algum direito sobre
a própria vida. As pessoas não pedem eutanásia por ter dores,
porque hoje já há alternativas em clinicas paliativas e de dor,
e esta pode ser retirada. As pessoas que pedem eutanásia é porque
se sentem sós, marginalizadas e desvalorizadas. Não se resolve,
nem nunca se resolveu nada, matando pessoas. Resolve-se amando-as.
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