Jorge Bacelar
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Rolando Sá Nogueira
Fui apanhado de surpresa pela notícia de
abertura do Acontece: "Morreu hoje em Lisboa o pintor Rolando Sá Nogueira.
Tinha 81 anos". Seguiu-se o inevitável elogio fúnebre do crítico
de serviço. Fim.
Provavelmente nunca ouviram falar dele. É normal. Poucos são os
privilegiados que, como eu, tiveram a sorte de o ter como mestre. Foi um inovador
nas artes plásticas, mas fosse por timidez, fosse por não prestar
a mínima importância à crítica ou aos trends das galerias,
nunca foi "conhecido".
A imagem que tenho deste homem, grande, preto, altivo e distante, entra em contradição
com a memória das suas aulas de desenho. Era humano, chegava a ser terno,
solidarizando-se com o nosso desespero de não conseguir desenhar a cadeira
que estava à nossa frente. "O que custa são os primeiros quinhentos
mil desenhos. A partir daí já devem ser capazes de desenhar razoavelmente
".
Mas passava da ternura à dureza implacável com toda a facilidade:
chegar a uma aula com 10 minutos de atraso ou sem o material necessário,
equivalia a impedimento de assistir. Perdi duas aulas assim. Foi há 23
anos e não me esqueci. Nem me esqueço que se hoje consigo desenhar
alguma coisa de jeito, a ele o devo. Não ao talento, não à
inspiração divina, mas à convicção que a cabeça
manda e a mão obedece. Se não consigo que a mão faça
o que a cabeça pretende, é sinal de pouco exercício mental.
E para Sá Nogueira, o desenho é (prefiro referir-me a ele como ainda
estando deste lado) higiene mental. Tal como a música. Viajar. Devorar
paisagens e museus e cidades e rostos e corpos com os olhos, digeri-los com o
cérebro e ordenar à mão que os reproduza no papel. Exactos.
Com a vontade a determinar o resultado, e não com as fraquezas, tremores
e faltas de jeito com que desculpamos a incompetência da mão.
É, normalmente só falo mal e mando bocas.
Excepcionalmente, desta vez não o faço. Mesmo não tendo esquecido
o modo ignóbil como foi tratado pela direcção da Escola de
Belas Artes do Porto. Se ele passou por cima disso com a altivez e dignidade que
o marcavam, não vou ser eu a remexer na fossa séptica. As minhas
aulas são, na medida do possível e atendendo às diferenças
no tempo, no espaço e nas personalidades, reproduções das
aulas que tive a sorte de ter com ele. Só gostava que dentro de 20 anos
algum antigo aluno meu me dedicasse alguns pensamentos semelhantes. Era sinal
que a minha tarefa tinha sido cumprida.
Tenho pena de não acreditar noutra existência a seguir, porque gostava
de imaginar o mestre, felicíssimo, a saltitar entre as nuvens e os arco-íris,
fascinado com as novíssimas possibilidades cromáticas e compositivas
à sua frente. E a celestial academia de belas-artes, onde teria a cátedra
de desenho à sua espera.
E eu, na fila para me inscrever como seu aluno.
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