Na promoção da música,
cinema e multimédia
"A Mediateca desenvolve uma função
importante"
A Mediateca VIII Centenário, um espaço
situado na Guarda, permite realizar um vasto número de iniciativas através
do recurso a equipamentos audiovisuais e multimedia.
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Por Mário Ramos
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Ouvir um álbum de jazz, navegar pela Internet, ou ler uma revista de cinema,
são actividades ao dispor do público que visita a Mediateca VIII
Centenário. Uma oportunidade para todos os cidadãos da Guarda, especialmente
os mais jovens, estimularem a imaginação. Victor Afonso, director
deste espaço e um dos músicos mais inovadores em Portugal, falou
ao Urbi et Orbi sobre os seus projectos.
Urbi @ Orbi - Em que consiste o trabalho desenvolvido
na Mediateca VIII Centenário?
Victor Afonso - Organizamos eventos e disponibilizamos equipamentos para
as pessoas usufruírem das suas capacidades. Temos uma funcionalidade
múltipla. Abordamos várias áreas da cultura e do lazer
e, nesse aspecto, tentamos reunir um conjunto de actividades que vão
de encontro às necessidades e lacunas que existem na Guarda. A Mediateca
está aberta há quase dois anos e tem tido uma boa afluência,
sobretudo de jovens que procuram serviços na área da Internet,
da música, e das nossas próprias actividades culturais. Por exemplo,
na área do cinema, tentamos colmatar a lacuna de não haver mais
do que uma sala na cidade.
U @ O - É nessa perspectiva que se insere a retrospectiva da obra
de Jacques Tati?
V. A. - Segundo este princípio, tentamos colmatar essa lacuna com
a projecção e exibição de ciclos de cinema, mostras
de vídeo de cineastas, e filmes alternativos. O ciclo sobre Jacques Tati
é muito importante porque é uma forma, ao dispor da cidade, de
conhecer a sua obra. A nível nacional, suponho, a Mediateca da Guarda
foi a única entidade que organizou um ciclo integral da obra de Tati,
precisamente na comemoração dos 20 anos da sua morte.
U @ O - As escolas constituem um dos vossos públicos
específicos?
V. A. - Temos actividades directamente dirigidas a escolas porque possuímos
uma componente pedagógica e educacional muito importante. Muitas escolas
vêm ao espaço da Mediateca usufruir dos nossos equipamentos como
a Internet, a música, os audiovisuais. Desenvolvemos, também,
acções de formação, pequenos ateliers de música
e cinema.
U @ O - Este espaço constitui um impulso sobre
a cultura na cidade?
V. A. - O fundamental é que serve como catalisador de novas iniciativas,
novas experiências, nomeadamente em áreas como mostras de cinema,
conferências específicas sobre cibercultura, conferências
sobre sociedades de espectáculo. Em Junho e Julho fizemos um ciclo muito
importante sobre filmes mudos com música ao vivo. Exibimos seis filmes
clássicos da história do cinema mudo e a adesão e interesse
do público foram óptimos.
U @ O - É gratificante para si dirigir a Mediateca?
V. A. - Estou intimamente ligado à música, sou um grande cinéfilo,
gosto muito de Internet e novas tecnologias. Trabalho com coisas e áreas
muito importantes, e isso é muito gratificante, não só
porque estou a organizar coisas que, como espectador, gostaria de usufruir,
mas também, porque verifico que a Mediateca tem desenvolvido uma função
importante na Guarda.
"Não se sabe onde começa a
música produzida através de processos digitais ou tradicionais"
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A Mediateca tem ao dispor do público diversas actividades
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U @ O - Enquanto Kubik, apresenta-se na música
electrónica?
V. A. - Sim, tive formação clássica, mas nos últimos
anos segui uma vertente electrónica, fazendo música através
de computadores e recursos digitais.
U @ O - Uma das vertentes mais específicas da música
electrónica é o recurso a samplers. Um processo que se tem expandido
a todos os estilos...
V. A. - Expandiu-se em todos os sectores da música porque, se repararmos,
o sampler, como instrumento, tanto está na música electrónica
como no rock ou no pop. Todos os artistas, do rock ou pop, mais comercial ou
não, música étnica ou clássica recorrem ao sampler.
Actualmente, por vezes, não se sabe muito bem onde começa a música
concretizada através de processos digitais ou tradicionais.
U @ O - As suas influências podem ser as mais diversificadas
possíveis?
V. A. - Desde a música clássica, novas correntes de música
mais experimental dos anos 80 e 90, passando pela nova música de dança,
e pela música étnica. Através dessas influências,
retiro os elementos que me interessam para os regenerar e trabalhar de forma
criativa. Com o recurso a colagens de elementos sonoros que, possivelmente,
parecem divergentes e não se unem, é possível unir e criar
um tema novo. É um trabalho gradual, de colagens, remisturas, reformulação
de diversas fontes estéticas.
U @ O - Foi assim que nasceu Oblique Musique?
V. A. - Sim, assimilando-os com sons criados originalmente por mim. Já
Brian Eno, nos anos 80, dizia que uma enorme parte da música mais interessante
era constituída por 80por cento de regeneração e 20 por
cento de inspiração, ou seja, actualmente, a música mais
criativa é aquela que reúne referências do passado com a
nossa própria criatividade.
U @ O - Joga com os conceitos de original, inovador?
V. A. - Sim, penso que isso nos remete para uma questão essencial:
saber se, actualmente, existe ainda a denominada música original e inovadora.
Numa perspectiva muito rigorosa considero sinceramente que não. Ao longo
do século XX já se experimentou praticamente tudo. Seguramente
vamos observar coisas novas, mas há sempre referências ao passado.
Muitas vezes pensamos que aparecem projectos novos muito inovadores esteticamente
na área da electrónica, fusão da electrónica com
jazz, com música étnica mas, para quem tem conhecimentos minimamente
fundamentados e referências do passado, sabe que esses músicos,
sem lhes retirar o mérito daquilo que fazem e de terem criatividade,
foram buscar influências, elementos ao passado.
"A música pode ser simplesmente "assemântica´"
U @ O - Num texto publicado na Internet, refere que, "se
todas as linguagens artísticas se apropriam da realidade quotidiana para
delas retirarem uma consciência artística, nem todas recorrem a
esse processo nem possuem a mesma característica semântica."
Não contrasta com a percepção do processo criativo?
V. A. - No rock, como no hip hop, existe um forte suporte do meio envolvente.
É natural que exista sempre um reflexo, como qualquer manifestação
artística, do meio ambiente. O filósofo espanhol Ortega y Gasset
disse que "sou eu mais a minha circunstância", ou seja, aquilo
que faz o que eu sou, as minhas características, é a minha personalidade
que é, foi e será sempre construída com base no que me
envolve. Relacionado com o mundo em si, o mundo físico, as emoções,
a relação com as pessoas, tudo isso define a minha personalidade
ao criar qualquer coisa, seja uma obra literária, um filme, uma pintura.
Mas um músico, um criador, poderá não sentir essa preocupação
em expressar uma realidade externa. É por isso que não aceito
esse conceito, que é um bocado conservador, que define a música
como "a arte de exprimir emoções através de sons."
A música pode ser simplesmente "assemântica", ou seja,
sem significado.
U @ O - Mas não envolve sempre um significado,
por exemplo, o silêncio pode ter um significado bastante forte. É
um processo que envolve a participação do público?
V. A. - O compositor e teórico norte americano John Cage, nos anos
50, 60, com a sua obra quatro minutos e trinta e três segundos demonstrou
que o silêncio não existe, persiste sempre um forte valor estético
e musical. Fez uma obra para piano, sentou-se à frente do público,
abriu a pauta e durante precisamente esse tempo não tocou rigorosamente
nada. Era perceptível apenas o ruído da assistência. O processo
criativo pode não ter propriamente um significado específico,
é possível não estar incluído num determinado valor
estético ou musical. Um músico pode, premeditadamente, escrever
uma letra sem sentido.
U @ O - Mais do que sentir as influências do meio,
não será o músico que constrói esse ambiente?
V. A. - Há múltiplos exemplos ao longo da história
rock/pop em que os músicos sugeriram formas de estar, relacionamento,
formas de entender a música e a própria vida. Desde os anos 60
que isso sucede. Posso referir, a título de exemplo, o movimento punk.
Todos esses movimentos tiveram um suporte musical, mas também um enorme
aspecto social e político. Mais recentemente, o hip hop reflecte um certo
estilo de vida.
U @ O - Muitos críticos consideram a música
electrónica porventura fria, imaterial...
V. A. - Há alguns sectores da crítica e do público
que definem este género como frio e cerebral. Mas a música clássica
também pode ser fria e cerebral, a música étnica, o rock
igualmente. Depende essencialmente da abordagem que se faz a cada género
musical, mas garanto que há muita música electrónica que
contrasta com esses termos.
U @ O - No nosso país surgiu um conjunto
de novos músicos de electrónica. Juntamente com o hip hop é
uma área extremamente activa e inovadora.
V. A. - Acho óptimo o aumento de novas propostas musicais, novas
editoras, novas promotoras de espectáculos interessadas na área
da música electrónica. A galeria ZDB, no Bairro Alto, promoveu
uma mostra de música e multimédia, novos projectos musicais. A
Mediateca mostrou, nas conferências de Cibercultura, um projecto nessa
área da Monocromática, uma jovem editora de música electrónica
nacional.