Belmonte, ano de 5762: é nesta vila que sobrevive
ainda uma comunidade judaica que existe há já
cinco séculos. Na tentativa de desvendar o mistério
que envolve estes judeus, partimos à procura da
sinagoga, símbolo evidente de uma fé enraizada
durante gerações. "É ao fundo
da rua, mas só ao sábado é que se
encontram...lá para as coisas da religião
deles!", indica um transeunte. Há um tom de
crítica nas suas palavras. Daí por diante,
seria sempre este o tom utilizado pelos restantes habitantes
da vila, com os quais nos cruzámos, ao referirem-se
aos membros da comunidade. Há um muro invisível
que separa estes dois mundos.
Maria, nome fictício, explica o porquê do
distanciamento existente: "Sempre fomos muito gozados
devido aos nossos hábitos, religião e maneira
de vermos o mundo. Por causa da crítica é
que nos fechámos". O medo e a desconfiança
moram nos olhos dos judeus de Belmonte, heranças
que a História lhes deixou. As respostas que nos
dão são curtas e ambíguas. Andamos
de loja em loja à procura de alguém que
nos fale do judaísmo que praticam mas todos nos
indicam sempre alguém que percebe mais do assunto.
São todos comerciantes, feirantes e empresários.
"À sexta-feira limpa-se a casa toda antes
do entardecer; é que para nós depois do
pôr-do-sol já é um outro dia e ao
Sábado não se faz nada porque é dia
santo", explica Maria.
Depois de vários anos
a frequentar o culto cristão, os judeus já
têm o seu templo
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Dois horizontes, uma só vila
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Os outros chamam-lhes de "marranos", que para
eles é sinónimo de porco. Na verdade, a
palavra "marranos" vem do hebraico "mar
anos" que significa "convertidos à força".
As críticas são frequentes: "Tenham
cuidado com eles, os judeus só não enganam
se não puderem"; "são uns egoístas,
uns invejosos". Maria, serenamente, diz-nos que já
estão habituados. "Fazemos a nossa vida normalmente
e não ligamos, fomos cá criados e já
sabemos como as coisas são". Acrescenta no
entanto que "isto não implica que não
haja convívio".
O muro não é recente e foi construído
por ambas as partes. Diversas situações
acentuaram esta subtil divisão. O caso mais marcante
de que nos falaram várias pessoas foi o de Frédéric
Brenner, jornalista francês a quem os judeus de
Belmonte abriram as suas portas e deram os seus testemunhos.
Durante o seu trabalho na vila, filmou várias práticas
religiosas judaicas e declarações onde os
membros desta comunidade falavam de anti-semitismo por
parte de algumas pessoas. Prometeu-lhes que a película
intitulada "Les derniers marranes" não
passaria nem em Portugal nem em Espanha. O certo é
que passou em França onde emigrantes portugueses
fizeram cópias que trouxeram para Belmonte. Toda
a vila viu. Resultado: as hostilidades cresceram e a desconfiança
também.
Uma farsa partilhada
Numa viagem a um passado mais longínquo, Manuel
Marques, pároco durante 21 anos em Belmonte, fala-nos
de como mudou o rumo da história desta comunidade.
Foi em 1969 que se recusou a continuar uma tradição
imposta aquando da Inquisição: a de dar
os sacramentos da religião católica a judeus.
"Eu senti de tal forma a verdadeira fé deles
num deus único, Adonai, como lhe chamavam, que
não poderia continuar a participar numa farsa".
Aquilo que levou a esta decisão foi o facto de
os judeus realizarem as suas cerimónias secretamente
antes dos preceitos católicos, principalmente casamentos
e funerais, facto que era por todos conhecido.
O grande passo deu-se na década de 80, altura em
que a comunidade judaica se assumiu como tal. O primeiro
casamento e o primeiro funeral sem padre católico
datam de 1988. Acontece que durante muitos anos estes
judeus receberam os sacramentos de outros párocos
de forma a evitarem ser diferentes. Segundo Antonieta
Garcia, que estudou a comunidade durante mais de 15 anos
e foi professora na vila, "eram católicos
de fachada e judeus de coração".
A perda de contacto com os ensinamentos sagrados, sem
chefes, sem livros e o facto de aderirem a uma religião
em que não acreditavam levou-os a mostrar uma forma
diferente da que professavam no interior. Durante séculos
cresceu no seio da vila o chamado criptojudaísmo,
uma tradição baseada no secretismo e na
oralidade, onde as mulheres desempenhavam o principal
papel. Maria revela-nos que eram elas que "sabiam
toda a lei e transmitiam às filhas o que era preciso
ser feito".
Oração que rezavam antes de entrarem
numa igreja católica para receberem os sacramentos:
"Eu entro nesta igreja não para adorar pau
e pedra mas sim o Altíssimo Senhor Adonai".
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O cemitério judaico em Belmonte
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O contacto com outros irmãos de fé abriu-lhes
horizontes económicos e culturais. Manuel Marques
lembra que "mantinham a tradição de
casarem dentro da própria comunidade, que até
há pouco tempo não tinha meios, o que lhes
trazia dificuldades financeiras". As relações
de consaguinidade eram frequentes e é normal encontrar
laços de parentesco e apelidos que se cruzam. Os
casamentos dentro da comunidade eram uma forma de protecção
e de preservação dos seus membros, principalmente
das mulheres. O antigo pároco explica-nos o motivo
desta tradição: "As judias não
trabalhavam para outrém, daí que o casamento
significasse sobrevivência". Apesar de alguns
homens terem contraído matrimónio com mulheres
que não pertenciam à comunidade, não
se conhece até hoje nenhuma judia que tivesse feito
o mesmo.
Salomon Azoulay, marroquino judeu que visitou a vila,
construiu, em 1996, a sinagoga que representou mais um
marco importante na história dos judeus de Belmonte:
fechavam-se as portas ao criptojudaísmo mas abriam-se
as do judaísmo ortodoxo. A partir de então,
o homem começava a assumir o papel que outrora
fora desempenhado pelas mulheres. Actualmente, já
existe uma direcção, tal como em qualquer
organização, regras, livros, aulas de hebraico
e até a presença de um rabino para cerimónias
mais importantes.
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