Por Carmen Martins e Laura Sequeira



António Carlos Mendes é um autodidacta apaixonado pela sétima arte

Urbi@Orbi - Qual foi o seu percurso até encontrar o cinema?
António Carlos Andrade - O meu pai enganou-se ao enviar-me para o ensino de carácter profissional e não de carácter cultural, como seria, um professor, um doutor, ou qualquer coisa assim do género. Era o que se podia tirar na altura. Agora felizmente o ensino já está aberto a todas as camadas sociais, ainda que seja um bocadinho caro. Encaminhei-me para este curso e na cultura passei a ser um autodidacta. Acabei o curso de debuxador e ainda lá andei dois anos a estudar tinturaria. Eram os dois cursos que possibilitavam o ingresso no sector têxtil.
As férias levaram-me para o cinema e depois perdi o ano na escola. O curso de tinturaria só serviu para me incutir o interesse pela cultura e pelo saber mais.

U@O - E porquê esse gosto pelo cinema?
ACA -
Eu gosto imenso de cinema. Mas uma das principais razões pela qual gosto dessa arte é porque quero aprender, como diz Lenine: "aprender, aprender, aprender sempre". Como tinha deixado os estudos, vi no cinema (naquele tempo o cinema era a única arte que chegava à Covilhã) um interesse que abrangia um bocadinho mais a cultura. Evidentemente que nos anos 40, o cinema que nos chegava era mais o cinema americano.

U@O - Qual foi o primeiro filme que viu?
ACA -
Boa pergunta. Eu não fixei o título. Sei que entrei gratuitamente para o cinema. Em frente ao palco do Teatro-Cine havia duas traves que impediam que se visse bem e o bilhete custava 15 tostões. Por isso tinha que se ver de lado. Mas não me recordo qual foi o primeiro filme que vi. O que posso dizer é que jamais esquecerei os americanos nos anos 40 são fertéis em filmes musicais. Daí que jamais possa esquecer esses filmes, através dos quais passei a ter gosto pela música. Não posso esquecer filmes onde entravam grandes executores americanos: o Louis Armstrong (expoente máximo do jazz), grandes orquestras americanas, o Glen Miller, Benny Goodman. Esses músicos fizeram com que o gosto pela música ficasse. Na altura (II Guerra Mundial) havia necessidade de distrair as pessoas com esses filmes que não tinham conteúdo algum, mas que tinham a actuação de grandes orquestras e grandes músicos.

U@O - Como é que tem visto o cinema ao longo dos tempos?
ACA -
Com o aparecimento da rádio nos anos 30, as pessoas compravam o seu aparelho e ouviam informação, música e teatro. O cinema nasce no século passado, e aqui está a grande distinção entre o cinema europeu e o cinema americano. Nós sabemos que o cinema foi descoberto pelos irmãos Lumiére e quem se aproveitou em termos de marketing e dinheiro, foram os americanos, que comercializaram o cinema. Nos anos 40, o cinema está no auge na europa. Aqui na Covilhã eram magotes de pessoas que assistiam às sessões. Às nove e meia ía muita gente para o Pelourinho que ouvia a música que o senhor do Teatro-Cine punha. Uma marcha era o sinal para entrar no espectáculo, tocava a marcha e a avalanche das pessoas lá ía. Era uma alegria extraordinária ir ao cinema naquela altura. Foi talvez o ponto alto do cinema. O cinema sofreu muito com o aparecimento da caixinha mágica, aquela caixinha que retém as pessoas em casa. É de facto uma grande invenção, mas absorve a maioria das pessoas que deixam de vir ao espectáculo por causa da televisão. As telenovelas, sem conteúdos, são do agrado do público e dão às televisões o que elas gostam, as audiências.
Naquele tempo era uma alegria. Havia aí pessoas que ficavam apaixonadas por ídolos do cinema. A Marilyn Monroe atraía multidões. Tal como outros gostavam do John Wayne, do Gary Cooper, Robert Taylor...

U@O - Qual é o seu actor preferido?
ACA -
Na altura havia uma actriz que eu gostava muito que era a Heidi Lamar. Uma vez a minha mãe não me acordou a tempo de eu ir ver o filme dela, que se chamava "O mestiço". Fiquei arreliado com a minha mãe! Um dos primeiros filmes que vi era do realizador John Ford sobre um problema social. Eu tenho à volta de 60 anos de cinema. O auge do cinema ficou marcado pelos clássicos, o chamado filme musical. Aprendemos a dançar na esplanada do Teatro-Cine, foi a nossa escola de música. Rapazes com rapazes, lá dançavamos. Isto era outra faceta do cinema. Era o cinema, a música e depois o bailado. Aprendíamos sapateado com o Fred Astaire. Os mais habilidosos dançavam sapateado, os outros dançavam o tango. Isto faz parte das vivências da própria cidade.

U@O - Qual é o seu realizador preferido?
ACA -
Vocês aprendem com tudo, vão estudando, aqui e além, vão adquirindo sabedoria e a minha sabedoria em relação aos realizadores vem de ser autodidacta, vou deixando de preferir este ou aquele actor para passar a preferir os grandes realizadores. Já ía ao cinema, não para ver os grandes actores, mas para ver os grandes realizadores. Podemos falar que uma faceta enorme do cinema europeu é o chamado neorealismo italiano. Há sempre grandes realizadores que têm uma mensagem social ou fazem um drama sobre a guerra, temos que colher os frutos da mensagem do realizador. Realizadores italianos, o Visconti, o Vittorio de Sica, que nos trouxeram obras que hoje são clássicos do cinema.

U@O - E qual considera ser o melhor filme?
ACA -
Tenho muitos, mas quando o Cine Clube da Beira Interior me pediu para escolher o filme eu escolhi o "Couraçado de Potemkine porque há volta dele tenho vivências engraçadas que me ficaram na memória. É a chamada cinematografia russa. Este filme traz-nos a revolução russa das injustiças. Trata da repressão e é passado no tempo do Czar. A censura não deixava vir a Portugal estas grandes obras clássicas. Eu fui dirigente sindical aqui no sindicato dos textêis, essa é outra faceta da minha vida. Os sindicalistas entendiam deviam estar onde estivesse a classe operária. E foi numa reunião em Lisboa que eu vi esse filme, mas às escondidas.
Gosto de povo americano, mas o cinema americano tem a faceta do negócio e o europeu tem a faceta da cultura. Hoje sou capaz de distinguir um bocado superficialmente entre o cinema europeu e o cinema americano. Nós somos europeus e as nossas raízes vão sempre para os filmes europeus. Houve realizadores excepcionais. Até realizadores portugueses: Fernando Lopes, que realizou o Delfim. Eu não conhecia a obra, mas tive a oportunidade de conhecer através do filme. Aqui está outra faceta do cinema, traz-nos os conhecimentos das grandes obras literárias, de grandes escritores. Eu já vi a vida de Van Gogh e de Toulouse Lautrec.
Realizadores eu tenho muitos. O mundo dá muitas voltas...

U@O - E que voltas são essas?
ACA -
Um dia vou a Odessa e dou com aquela célebre escada que é o ponto máximo daquele filme. Para fugirem às forças do czar aquela gente precipitou-se toda pelas escadas e há uma mãe que leva o carrinho de bebé e vai por ali abaixo e morre. E isto é uma cena extraordináriamente dramática.Quando me vi naquelas escadas disse: "cá estou eu nas escadas onde passaram os grandes acontecimentos no Couraçado de Potemkine".


"Só um indivíduo que não tenha sensibilidade é que não gosta de cinema"



E o teatro...

U@O - E em relação ao teatro?
ACA -
Havia um nível de vida mais baixo mas algumas companhias deslocavam se à província. Vinham aqui muitas companhias ao Teatro-Cine da Covilhã. Depois o custo de vida começou a subir de tal maneira que o teatro começou a escassear e não vêm cá tantas peças.
Agora fizeram o favor de me oferecer um bilhete para o trabalho aqui da ASTA que já nos deu salvo erro dois espectáculos. O último foi os Idiotas. Uns dias antes eu tinha que ir a Lisboa e fui ao teatro. Olhe o contraste, enquanto a vossa ASTA tem o movimento estudantil que vai ao teatro, a população em geral falha. Por outro lado, estive em Lisboa e para surpresa minha passo pelo Coliseu às 21 horas e já havia fila para ver a Simone, que salvo erro é uma cantora Brasileira. Fui ao Politeama para ver a Eunice Munoz e o Rui de Carvalho, já estava lá outra fila. Fui ao D. Maria que tinha o Hamlet de Shakespeare, mas como o D. Maria tem uma sala estúdio, fui lá ver uma peça muito engraçada.

U@O - E o que pensa do panorama do teatro em Portugal?
ACA -
Houve um grande movimento pós 25 de Abril que moveu muita gente para o teatro. Temos dois exemplos o Teatro Aberto e a Barraca na Praça de Espanha. E não só, muitos outros teatros despoletaram com o movimento de jovens actores. Talvez não tenham saído peças de autores portugueses, porque eu recordo-me de uma crítica que dizia que ninguém escrevia teatro antes do 25 de Abril. Ou escreviam e ninguém sabia. Agora que estamos em liberdade onde é que estão essas peças de autores portugueses? E então houve um grande movimento a nível da realização de teatro. O ADOC é um teatro ali na praça Martim Moniz e tem conteúdos de humor e problemas sociais. O que me quer parecer é que o povo gosta do teatro do Parque Mayer- o teatro de revista. Também lá ía de vez em quando, hoje já não vou. Está bem que o povo goste da sua piadinha e a revista era às vezes um espectáculo extraordinário, se bem que tem agora têm decaído um bocadinho. O D. Maria foi o primeiro teatro Português. Há grandes teatros, mas não se comparam com este mesmo a nível de edificio e de estrutura. Eu vi "A Mãe Coragem" de Bertolt Brecht no D. Maria e nunca mais me esqueço. A Eunice Munoz tem uma interpretação extraordinária. E também é de um grande dramaturgo. Dele acho que vi todas as peças que passaram aqui em Portugal.


U@O - Pode dizer-se que é o seu autor favorito?
ACA -
Porque é um homem de esquerda, compreende. A " Mãe Coragem" foi o espectáculo que mais me sensibilizou. Por exemplo, a peça: "esta noite choveu prata" (não sei se era este o nome), uma peça brasileira, monólogo, que teve um dos melhores actores que eu conheço, o João Villaret. Era um citador excepcional, há discos onde o ouvimos a recitar poemas e nesta peça ele era o único em palco. Cá ficou na memória. Outra foi o " Adorável mentiroso" de Bernard Shaw e tinha dois actores um deles eu lembro-me que era a Eunice Muñoz.

U@O - A Eunice Muñoz é a actriz que mais o marcou?
ACA -
Sim é uma actriz excepcional.É a primeira actriz.

E os Livros...

"São os jovens quem pode fazer alguma coisa por este pequeno país"

U@O- E acerca da literatura?
ACA-
Sou um proletra, um operário, que ía comprando os seus livros. Devo ter uma biblioteca pequenina. Enfim a gente não ganhava muito nos têxteis, apesar de estar no quadro. Tenho uma biblioteca em casa com 600 livros. Qualquer dia dou-os. Dou-os porque nenhum dos meus filhos são dedicados à leitura. Bem, às vezes sacrificava muito do meu sono para ler alguns livros. Autores preferidos eu já lhe citei aqui um, José Cardoso Pires. É claro que podia aqui citar o meu camarada Saramago. Devo ter uns cinco ou seis livros dele. O primeiro livro que eu li sobre ele foi um livro controverso, o Evangelho Segundo Jesus Cristo.Sabe como é que eu o li? Emprestei o Diário do Che Guevara a uma moça e ela emprestou-me o livro do Saramago.
A semana passada recebi três livros dele.

U@O- Qual é o livro dele que mais gosta?
ACA-
Talvez o primeiro, esse que eu já referi. O "Memorial do Convento" tem uma escrita muito dificil, porque não tem pontuação nenhuma e depois são parágrafos muitos grandes.

U@O - Qual é o seu livro preferido?
ACA -
Boa pergunta. Não sei, livros que me sensibilizassem. Um livro que me sensibilizou foi "As Vinhas da Ira" de John Steinbeck, que é um escritor americano. Em teatro uma grande peça, de Arthur Miller " A morte de um caixeiro viajante".
Entre a leitura, o cinema e o teatro, veja a ligação que há. Só um individuo que não tenha sensibilidade é que não gosta de cinema. De José Cardoso Pires eu li de enfiada três livros. Não li o Delfim mas li o último: "O que vais fazer José?". A revista do Público tem três ou quatro contistas extraordinários, um deles era o Lobo Antunes e o Cardoso Pires também escrevia.As revistas têm esta faceta. Agora tem o Mia Couto. Do Lobo Antunes já li algumas crónicas, mas não tenho capacidade para criticar. Além de ser um grande médico é também um grande escritor.

E o jornalismo...

U@O - O que é que acha do jornalismo português actualmente?
ACA -
Eu leio dois jornais por semana. Para mim é obrigatório ler o Diário de Notícias e ao fim de semana como não tenho muito dinheiro compro o Público. Mas porquê esses dias da semana? À sexta feira tem o suplemento Y, ao sábado tem o Mil Folhas e o Fugas e ao domingo tem a revista que é excepcional. São os melhores jornais do país. O Jornal de Notícias do Porto também é muito bom mas eu ainda tenho uma preferência pelo Público. Ainda recebi algumas criticas quando o comecei a ler porque pertence ao Belmiro de Azevedo. Mas eu comprava e continuo a comprar o Público. Leio um jornal todo.
Há um grande jornal francês que também gosto que é o Le Monde, mas a minha algibeira não chega para o comprar. Comprei o Le Monde uma única vez e tenho-o lá em casa, custou-me 600$, agora não sei se custa 700 ou 800$. Não o pude comprar mais. Fiz uma exposição para ver se me mandavam um Le Monde gratuíto, mas nem confiança me deram. Entre os conteúdos dos jornais portugueses e os conteúdos do Le Monde vai uma grande diferença. Com isto não estou a dizer mal dos jornalistas portugueses porque existem alguns com valor. Sei que alguns intelectuais e jornalistas portugueses vão beber a este jornal, tal como devem ir beber ao Times, que é inglês e depois fazem crónicas e artigos para o Público. Julgo que talvez seja assim. Ou talvez esteja errado, mas julgo que não. Eu tenho os meus conhecimentos graças à leitura destes jornais.

U@O - Qual é a sua opinião em relação ao panorama cultural português?
ACA -
Eu não acho que estejamos a viver aquilo que alguém chamou de geração rasca. Isso foi uma boca grave que não se devia ter dito. Eu confio na geração, confio em quem anda a estudar. Acredito que o futuro deste país e da Humanidade está na geração que presentemente estuda. E tenho confiança neles porque o futuro é deles.

U@O - Acha que os jovens de hoje lêem o suficiente?
ACA -
Sabe o que é que eu ando a ler? Ando ler poesia, um livro do Al Berto, que uma mocinha me emprestou.
Os jovens de hoje têm uma faceta muito engraçada. Têm muita literatura de ficção, mas lêm muitos livros técnicos. Porque esses interessam-vos para os vossos estudos. Esses livros devem ser carissímos, mas têm essa preocupação para fazerem os vossos exames e tirarem o vosso curso. Não quer dizer que não leiam ficção.
Esses conhecimentos fazem com que a geração actual que vai ter os destinos de Portugal na mão tenha mais bases e mais conhecimentos. Os jovens vivem num mundo maravilhoso. Eu não tenho video, porque gosto de cinema, não tenho Dvd, já para não falar na internet, no cd-rom. Os jovens têm estes meios audiovisuais que dão conhecimentos. Já para não falar da tecnologia de ponta, os avanços da ciência. A liberdade, e não só, faz com que cheguem cá os tais meios de comunicação, os media chegam a todo o lado. O passo gigante que Portugal vai dar é com a nova geração e com os conhecimentos e vontade que esta tem de vingar na vida. São os jovens quem pode fazer alguma coisa por este pequeno país. A vida dá conhecimentos. Eu tenho estes conhecimentos por ser autodidacta.