Por Rui Castro e Ricardo Cordeiro



"Acima de tudo sou actor"

Urbi@Orbi - Como é que nasceu a paixão pela representação?
Marcantonio Del-Carlo-
A minha paixão pelo teatro nasceu por acaso. Acabei o liceu e entrei no curso de Direito, mas como este não me fascinou, optei por desistir. Mais tarde, tive conhecimento, através de um amigo, que havia exames para o Conservatório e então decidi inscrever-me no curso de actores, mas sem nunca pensar fazer do teatro a minha profissão. Talvez tenha entrado porque fiz os exames sem a preocupação de agradar, sem qualquer tipo de pressão. Assim, foi com grande espanto que recebi a notícia de que tinha agradado. Como não queria ser actor, fui ao primeiro dia de aulas com o intuito de anular a matrícula, mas acabei por não o fazer porque comecei a gostar do ambiente. No meu tempo o Conservatório, situado no Bairro Alto, englobava as escolas de Música, Teatro, Dança e Cinema, o que proporcionava momentos de boa disposição, nomeadamente na cantina, onde se viam pessoas a dançar, a recitar, a gravar e a tocar instrumentos. Por tudo isto optei por ficar e a paixão foi crescendo cada vez mais.

U@O - Como foi a evolução da sua carreira profissionalmente?
MDC -
A minha actividade começou no Teatro Experimental de Cascais em 1989. De seguida estive cerca de seis anos no Teatro da Malaposta, passando depois uma temporada no Teatro da Cornucópia. Quando o Ricardo Pais assumiu a direcção do Teatro Nacional de São João, aceitei o convite para integrar o elenco, permanecendo aí dois anos. De regresso a Lisboa, tenho trabalhado em projectos meus e simultaneamente em várias Companhias.


U@O - Ultimamente tem mostrado uma certa apetência para escrever e encenar peças. Considera-se também argumentista e encenador?
MDC -
Não me considero nem uma coisa nem outra, acima de tudo sou actor. Costumo dizer que as minhas coisas acontecem por acaso, como sucedeu com dois textos que escrevi há três anos e que acabaram por se tornar peças teatrais. De uma forma um pouco inesperada acabei por ser eu a encená-las. Relativamente aos argumentos que faço, é também por acaso que surgem as ideias que escrevo quando tenho algum tempo livre, acabam por se transformar em peças ou argumentos. Não tenho qualquer tipo de preocupação em agradar os outros, pois escrevo apenas para mim. Tenho imensa sorte das pessoas gostarem dos textos que escrevo e de os utilizarem em peças teatrais, mas daí a considerar-me argumentista ou encenador vai uma grande distância. Contudo, admito que nos últimos projectos que fiz em teatro, exista um grande cunho pessoal, tanto na produção como na encenação, nomeadamente no mais recente, "Recitália", em que contracenei com o André Gago. Porém, este nunca é o meu primeiro objectivo.

U@O - Escreveu o argumento de "Amor Perdido", um telefilme que a SIC exibiu recentemente. Como é que surgiu a ideia?
MDC -
A ideia surgiu a partir de um artigo de jornal que li há uns anos atrás, que contava uma história de amor entre um homem de alguma idade e uma adolescente. Como é uma história muito habitual no meio urbano, decidi escrever algo que tivesse a ver com isso. Comecei por fazer uma sinopse e depois três cenas e, mais tarde, terminei a primeira versão da história com o nome "Até ao fim". Na mesma altura, participei no primeiro telefilme da SIC, "Amo-te Teresa", e por mera brincadeira o realizador Ricardo Espírito Santo, leu a minha história e aconselhou-me a propô-la para um dos filmes da SIC. Gostaram do que viram e pediram-me para reescrevê-la com o intuito de a poderem produzir. Eu e o João Nunes, que escreveu o argumento comigo, decidimos chamar-lhe "Amor Perdido".


"A arte faz-se pelos artistas e não em corredores de ministérios"



"Cada produção do ARTEC é uma viagem que fazemos e que só acaba no último dia de espectáculo"

 

U@O - Dirige o ARTEC, grupo de teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desde 1994. Como é que surgiu o projecto?
MDC -
O ARTEC nasceu após a realização de um workshop de teatro orientado por mim e pelo João Lagarto. No seguimento desta experiência e do trabalho inerente a ela, foi encenado um espectáculo no ano seguinte, cuja dramaturgia foi criada pelos alunos seleccionados após esse workshop. A forma alegre e empenhada como decorreu esse espectáculo resultou numa enorme vontade para continuar este projecto, que ao longo dos tempos se foi fortalecendo. O ARTEC é composto por um conjunto de actores fixos e todos os anos fazemos um workshop, em que se escolhem mais quatro ou cinco elementos para integrar o grupo. Este tem uma característica muito singular que é escrever sempre o que faz, até porque não tem muito sentido um grupo de teatro universitário estar a fazer coisas de outras pessoas. No entanto, sempre que tal acontece, temos o cuidado de as reescrever e todos os nossos processos de criação das peças começam aí, no acto da escrita, das ideias. À medida que vamos fazendo os nossos espectáculos, vamos introduzindo pequenas alterações que achamos relevantes. Cada produção do ARTEC é uma viagem que fazemos e que só acaba no último dia de espectáculo.

U@O - Ao olharmos para peças como "As máscaras da merda ou a explicação das letras" e "A Branca de Neve e o Anão Esquizofrénico" constatamos que se tratam de peças muito divertidas e criativas. É esse o objectivo do ARTEC?
MDC -
Eu no teatro não gosto de máximas. Dou muita formação ao longo do ano e uma das coisas que digo sempre aos meus alunos é que a minha verdade não é absoluta, é tão válida como a verdade dos outros. Se pensarmos que pessoas como Van Gogh ou Fernando Pessoa morreram na miséria e só foram reconhecidos séculos depois, verificamos que não existem máximas. Não sei o que o ARTEC deve ou não fazer, o que sei é o que gostamos de fazer. Os nossos espectáculos têm um cunho sempre divertido e criativo, mas nunca queremos dar máximas a ninguém, porque nestes espectáculos fizemos assim, mas daqui a dois anos poderemos vir a fazer de outra maneira.

U@O - Qual é a principal diferença entre os grupos de teatro universitários e os grupos de teatro profissionais?
MDC-
Não conheço assim tantos grupos de teatro universitário. Acho que se pode distinguir o teatro amador do teatro profissional de uma única forma: o teatro profissional é a vida das pessoas que nele trabalham e elas vivem para isso, enquanto que no teatro amador, as pessoas disponibilizam algum do seu tempo livre para fazer teatro. Se tiver que apontar uma diferença, ela vai no sentido do que se faz dele, ou seja, uma profissão ou um passatempo.

Urbi@Orbi - A sua mais recente peça, "Recitália", em que contracena com André Gago, tem conhecido muito sucesso. Como é que surgiu a ideia? De que trata a história?
MDC -
Nós somos amigos há muitos anos e queríamos fazer um espectáculo juntos, jogando com a minha ascendência italiana e com a ascendência portuguesa dele. Decidimos juntar ideias que fomos tendo ao longo de três anos e que resultaram na encenação de "Recitália". Esta vive de uma série de histórias comuns aos dois países que são resultado dos cruzamentos que Itália e Portugal tiveram ao longo da História e que nós adaptámos ao teatro de uma forma divertida. O pressuposto são dois cozinheiros, um português e outro italiano que defendem a superioridade da cozinha do respectivo país. Além disso o nosso cenário é completamente biodegradável, pois é constituído por legumes que compramos no mercado. O espectáculo estreou em Guimarães, passou por Santo Tirso e pelo festival do Seixal e só depois viemos para Lisboa. De início, previmos actuar durante quinze dias, mas como a receptividade do público superou as nossas expectativas, esse período prolongou-se até aos quatro meses, sempre com lotação esgotada. Um aspecto curioso é o facto de não termos concorrido a qualquer subsídio e sermos um dos espectáculos com mais itinerância por todo o país.

U@O - Há vários actores que dizem que o Teatro em Portugal não está de boa saúde. Partilha da mesma opinião?
MDC -
Esse tipo de discussões não me interessa. A arte faz-se pelos artistas e não em corredores de ministérios. O poder político gosta de falar em arte mas nunca a faz. Quem faz a arte são os actores e só quando os criadores não tiverem nada para dizer ou criar é que o teatro estará mal. O problema poderá estar no facto de o poder político não financiar determinado espectáculo e eu não ter dinheiro para o realizar, mas se me preocupar com isso, nunca mais faço teatro. As discussões sobre a situação do teatro e sobre o dinheiro que o Estado investe no teatro não me interessa. É uma discussão para burocratas, ministros e críticos. O que me chateia é o facto de toda essa panóplia viver de nós, mas nunca olhar para nós. Se não fossem os actores, músicos, coreógrafos e bailarinos, não haveria críticos, IPAE e Ministério da Cultura.

"...não vale a pena tirar um curso para ir para o desemprego"

O actor prefere o teatro ao cinema ou à televisão

U@O - Uma vez que também faz cinema, quais são as principais diferenças que existem entre o actor de teatro e o de cinema?
MDC -
A essência do trabalho do actor é a mesma, o que varia é a técnica. No caso do cinema, nunca se sabe se o plano é fechado ou aberto e o que vai ser aproveitado na edição. Além disso, o tempo é muito limitado por questões orçamentais, enquanto que no teatro dispomos de muito mais tempo para ensaiarmos as peças,

U@O - O que prefere fazer: cinema, teatro ou televisão?
MDC -
Eu gosto das três áreas, mas dou preferência ao teatro porque foi lá que nasci como actor. Além disso, o teatro é uma arte nobre onde me reciclo e reencontro como criador. Enquanto que no cinema e na televisão o trabalho do actor depende muito da câmara, do microfone e do editor, no teatro o trabalho depende mais de mim, nomeadamente nestes últimos quatro anos em que integrei vários projectos de teatro, onde reescrevo espectáculos.

U@O - A Universidade da Beira Interior vai abrir em 2003 um curso de cinema. Considera fundamental existirem escolas de formação neste campo?
MDC -
Acho que há uma coisa muito importante e que o Ministério da Educação deveria pensar, que é o mercado de trabalho. E pensar muito a sério! A solução não passa apenas por criar novos cursos, mas por perceber se esses cursos vão ter saídas profissionais. Neste caso concreto, a grande questão que se coloca é a seguinte: que cinema se faz em Portugal? Se se pensar que em Espanha se fazem 150 filmes por ano, excluindo as curtas-metragens e as séries em película, aí sim, faz sentido haver cada vez mais cursos. Em Portugal, isso não acontece pois fazem-se apenas três ou quatro filmes, em média, por ano. Apenas num bom ano se conseguem fazer seis longas-metragens e actualmente umas sete curtas, mas como é raro haver bons anos... Volto a frisar que o Ministério da Educação deveria pensar o mercado de trabalho e, nesse sentido, arranjar trabalho para os futuros licenciados nesse curso de cinema, porque não vale a pena tirar um curso para ir parar ao desemprego. E, de facto, não há trabalho no cinema em Portugal. Conheço empresas que sobrevivem, porque fazem filmes franceses e a equipa é sempre a mesma. Por isso é que eu digo que o Ensino Superior não deve ser conduzido apenas em termos ideológicos, mas sim em termos de mercado de trabalho.

U@O - Pode-se então dizer que a sua perspectiva acerca do ensino em Portugal é negativa. É assim?
MDC -
Não é negativa porque para o ser, tinha que generalizar muito e dizer que está tudo mal. Numa altura em que se discute a reestruturação do ensino em Portugal, o meu ponto de vista, que pode estar errado como outro qualquer, é o de que essa reestruturação não deve passar por mudar cursos, horários, coisas práticas. Acho que toda a filosofia do ensino deveria ser modificada e para isso é necessário ter uma grande coragem política, coisa que na minha perspectiva, nunca ninguém terá.


"Não sou daquelas pessoas que sonha com o facto de ser conhecida"



"Prefiro viver o dia a dia e pensar sempre o presente"

U@O - Que projectos tem para o futuro?
MDC -
Tenho tantos... Mas não gosto de pensar no dia de amanhã. Há pouco tempo participei num filme francês, de que não estava nada à espera, vou ser a voz de uma campanha de whisky, que também não esperava. Vou dobrar um dos filmes de desenhos animados americanos que saíram há pouco tempo... Eu gosto de estar em casa e de me telefonarem, inesperadamente, a perguntarem se eu quero fazer determinada coisa. Nunca penso como vai ser o dia de amanhã e não tenho problema nenhum de um dia deixar este meu trabalho e comprar um monte alentejano para criar galinhas. Não me assusta nada, porque a nossa vida é tão efémera... Prefiro viver o dia a dia e pensar sempre o presente.

U@O - Como é que é conviver com o sucesso?
MDC -
Portugal é um país de brandos costumes. Actualmente, quando eu e o André vamos para fora de Lisboa fazer espectáculos e há um grande reconhecimento, eu lido muito bem com isso. Não sou daquelas pessoas que sonha com o facto de ser conhecida. Por isso, não deixo de fazer a minha vida, continuo com a minha casa, com o meu cão... Mesmo com estes programas que passam na televisão neste momento, acho que as coisas são pacíficas e agrada-me que seja assim. Assusta-me muito se isto se transformar em Hollywood, em que não se pode sair à rua. Outra coisa que me assusta é a ilusão que muita gente está a ter com o estrelato, que é uma coisa relativa num país pequeno como Portugal. Exemplo disso são as pessoas que fizeram o primeiro Big Brother, pois toda a gente já se esqueceu de quem eles são, tal como está a acontecer com a Academia de Estrelas. De um dia para o outro, essas pessoas passam de perfeitas desconhecidas a pessoas famosas, mas o facto é que também pode acontecer o contrário. Não gosto nada desta onda do estrelato, porque é tudo muito efémero.

U@O - Como é que gere o seu tempo?
MDC -
Tenho uma namorada que me atura muito (risos). É difícil gerir o meu tempo porque estou empenhado em várias coisas ao mesmo tempo e ainda dou formação ao longo do ano. No tempo livre que me resta nunca deixo de trabalhar, ou seja, chego a casa, tenho umas ideias sobre o que estou a fazer e vou escrevê-las. De qualquer forma, arranjo sempre maneira de fazer férias e se não faço um mês seguido, faço um fim de semana mais prolongado.


 




Actualmente, o actor dirige o grupo de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa



PERFIL



Marcantonio Del-Carlo nasceu a 16 de Novembro de 1965, em Arare, no Zimbabwe, mas viveu em Itália até aos 15 anos, altura em que veio para Portugal. Frequentou o Curso Superior de Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema do Conservatório de Lisboa. Começou a sua actividade teatral em 1989, no Teatro Experimental de Cascais. Integrou o elenco do Teatro da Malaposta, do Teatro da Cornucópia e do Teatro Nacional de São João. No cinema participou em vários filmes como "Adão e Eva", "Capitães de Abril" e "Amo-te Teresa". A sua passagem pela televisão conta participações na série "Diário de Maria", na sitcom "Mãos à obra" e nas telenovelas "Ajuste de Contas", "Vidas de Sal", "Filha do Mar" e "Tudo por Amor", que se pode ver actualmente na TVI. Desde 1994, dirige o ARTEC, grupo de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa.