Nuno Miguel Augusto

Eu e a Walt Disney

 

Eu e Walt Disney até nos damos bem. Gosto de quase tudo. O que não consigo perceber é o efeito real dos filmes de animação (com homens, mulheres e animais domésticos) para a transformação das estruturas sociais. Desculpem, mas não sou inteligente a esse ponto. Sou-o, o suficiente, para distinguir o real do fictício. A maioria dos filmes da Walt Disney, como muita da arte destinada aos mais novos procura desenvolver a imaginação e a criatividade. Por isso, se baseia no irreal, no fantástico. As crianças são, por essência, ingénuas, imaginativas e criadoras de uma fantasia que mais tarde nos atraiçoa e nos mostra o mundo real.
Estupefacto, como quem descobre a essência da mudança social, descubro entre as leituras de fim de dia que, afinal, a animação é bem mais importante para o curso da história que as manifestações de rua. Como é que nunca nenhum, de entre os tantos homens e mulheres que se dedicam à análise da acção colectiva, da participação política, dos movimentos sociais, etc, conseguiu descobrir tal coisa?! Afinal, contrariando todos os manuais da história e um monte de incautos investigadores, num rasgo imemorável de senso-comum, descobre-se o papel fundamental da animação na construção da mudança social, liderado pelo Simba (o rei leão) e, claro está, pelo Pateta. Tantos e tantos anos nisto e nunca se percebeu que, afinal, a Pokahontas pode constituir uma mais-valia no combate ao racismo quando comparada com Luther King.
Antevemos já o papel primordial que a Minie poderá vir a ter na emancipação feminina, obrigando o Mickey, nos diversos quadradinhos, a lavar a loiça e a eliminar o cheiro próprio das excrescências produzidas pelos ratos. Não terá sido já a Minie e não aquelas moças que andavam semi-peladas pelas ruas de Paris, a desencadear a emancipação feminina (sobretudo a simbólica)? Bem, como na altura ainda ninguém tinha investigado aprofundadamente esta questão, jamais o saberemos. O que não deixa de ser feio é andar semi-pelado pela rua! Paris, mesmo sendo a capital do amor, não merecia isto. Não havia necessidade…
É óbvio que a produção cultural é importante na construção de referenciais simbólicos, mas não é comparável a outras dimensões da acção humana. Restringe-se a um campus específico, muitas das vezes elitista. Um sociólogo percebe facilmente que as lógicas de acção colectiva estão bem mais arreigadas à participação que à mera interpretação de narrativas externas, ainda que estas sejam importantes na construção do seu self. Fala-se hoje em participação, não como elemento atípico e perturbador da ordem social, mas como um instrumento de mudança social e política.
Poderíamos produzir milhares de animações sobre a emancipação do povo timorense. Houve-as, feitas pelos mais hábeis no desenho, mas ouve também milhões de pessoas que saíram para as ruas em defesa de uma causa. Dizer que a Walt Disney pode ter um papel mais importante na luta por causas que as manifestações de descontentamento é desconsiderar tantos quantos, bem ou mal, ao longo do curso da história, se bateram pelos seus ideais. É desconsiderar todos os milhões que arriscaram a sua própria vida por terem a coragem de procurar, dentro das suas capacidades, mudar o que não está bem.
Historicamente, vivemos um dos períodos mais débeis no que concerne à capacidade por parte dos diferentes grupos sociais em interferir na esfera pública. Verificamo-lo, não só nas abstenções elevadas, como na fraca participação noutros domínios que não apenas o eleitoral. Os diferentes aspectos que marcam a mudança ideológica e identitária têm papeis diferenciados, ainda que se inter-relacionem. A arte pode constituir um impulso para modos de acção colectiva, assim como pode ser criada com o intuito de criar um quadro simbólico gerador de consensos. Não concordo com Marx, quando afirma que a arte é uma das muitas ideologias burguesas. Pode ser e pode não ser. É óbvio que a arte, nos seus diversos domínios, pode funcionar como uma expressão de emancipação relativamente ao quadro normativo dominante, como pode funcionar como uma reprodução desse mesmo quadro. Fernando Pessoa contrariou a métrica "aceite" no seu tempo, os pintores do realismo socialista reproduziram na propaganda os motes do regime soviético…
Já temos a história de Portugal em banda desenhada. Ainda bem. Ao ritmo a que se lêem livros, sobretudo que interessem, talvez o livro tenha sucesso. É pena que em 24 e Abril houvesse censura, caso contrário não seria necessária tanta gente na rua. Não pensem os "sabidotes" de esquerda que a adesão popular e que o arriscar do couro foi importante para a implementação da democracia em Portugal. Bastava acrescentar ao Boradad'água um folhetim com a história da democracia aos quadradinhos e seríamos todos, sem excepção, democratas.