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Eu e a Walt Disney
Eu e Walt Disney até nos damos
bem. Gosto de quase tudo. O que não consigo perceber
é o efeito real dos filmes de animação
(com homens, mulheres e animais domésticos) para
a transformação das estruturas sociais.
Desculpem, mas não sou inteligente a esse ponto.
Sou-o, o suficiente, para distinguir o real do fictício.
A maioria dos filmes da Walt Disney, como muita da arte
destinada aos mais novos procura desenvolver a imaginação
e a criatividade. Por isso, se baseia no irreal, no fantástico.
As crianças são, por essência, ingénuas,
imaginativas e criadoras de uma fantasia que mais tarde
nos atraiçoa e nos mostra o mundo real.
Estupefacto, como quem descobre a essência da mudança
social, descubro entre as leituras de fim de dia que,
afinal, a animação é bem mais importante
para o curso da história que as manifestações
de rua. Como é que nunca nenhum, de entre os tantos
homens e mulheres que se dedicam à análise
da acção colectiva, da participação
política, dos movimentos sociais, etc, conseguiu
descobrir tal coisa?! Afinal, contrariando todos os manuais
da história e um monte de incautos investigadores,
num rasgo imemorável de senso-comum, descobre-se
o papel fundamental da animação na construção
da mudança social, liderado pelo Simba (o rei leão)
e, claro está, pelo Pateta. Tantos e tantos anos
nisto e nunca se percebeu que, afinal, a Pokahontas pode
constituir uma mais-valia no combate ao racismo quando
comparada com Luther King.
Antevemos já o papel primordial que a Minie poderá
vir a ter na emancipação feminina, obrigando
o Mickey, nos diversos quadradinhos, a lavar a loiça
e a eliminar o cheiro próprio das excrescências
produzidas pelos ratos. Não terá sido já
a Minie e não aquelas moças que andavam
semi-peladas pelas ruas de Paris, a desencadear a emancipação
feminina (sobretudo a simbólica)? Bem, como na
altura ainda ninguém tinha investigado aprofundadamente
esta questão, jamais o saberemos. O que não
deixa de ser feio é andar semi-pelado pela rua!
Paris, mesmo sendo a capital do amor, não merecia
isto. Não havia necessidade
É óbvio que a produção cultural
é importante na construção de referenciais
simbólicos, mas não é comparável
a outras dimensões da acção humana.
Restringe-se a um campus específico, muitas das
vezes elitista. Um sociólogo percebe facilmente
que as lógicas de acção colectiva
estão bem mais arreigadas à participação
que à mera interpretação de narrativas
externas, ainda que estas sejam importantes na construção
do seu self. Fala-se hoje em participação,
não como elemento atípico e perturbador
da ordem social, mas como um instrumento de mudança
social e política.
Poderíamos produzir milhares de animações
sobre a emancipação do povo timorense. Houve-as,
feitas pelos mais hábeis no desenho, mas ouve também
milhões de pessoas que saíram para as ruas
em defesa de uma causa. Dizer que a Walt Disney pode ter
um papel mais importante na luta por causas que as manifestações
de descontentamento é desconsiderar tantos quantos,
bem ou mal, ao longo do curso da história, se bateram
pelos seus ideais. É desconsiderar todos os milhões
que arriscaram a sua própria vida por terem a coragem
de procurar, dentro das suas capacidades, mudar o que
não está bem.
Historicamente, vivemos um dos períodos mais débeis
no que concerne à capacidade por parte dos diferentes
grupos sociais em interferir na esfera pública.
Verificamo-lo, não só nas abstenções
elevadas, como na fraca participação noutros
domínios que não apenas o eleitoral. Os
diferentes aspectos que marcam a mudança ideológica
e identitária têm papeis diferenciados, ainda
que se inter-relacionem. A arte pode constituir um impulso
para modos de acção colectiva, assim como
pode ser criada com o intuito de criar um quadro simbólico
gerador de consensos. Não concordo com Marx, quando
afirma que a arte é uma das muitas ideologias burguesas.
Pode ser e pode não ser. É óbvio
que a arte, nos seus diversos domínios, pode funcionar
como uma expressão de emancipação
relativamente ao quadro normativo dominante, como pode
funcionar como uma reprodução desse mesmo
quadro. Fernando Pessoa contrariou a métrica "aceite"
no seu tempo, os pintores do realismo socialista reproduziram
na propaganda os motes do regime soviético
Já temos a história de Portugal em banda
desenhada. Ainda bem. Ao ritmo a que se lêem livros,
sobretudo que interessem, talvez o livro tenha sucesso.
É pena que em 24 e Abril houvesse censura, caso
contrário não seria necessária tanta
gente na rua. Não pensem os "sabidotes"
de esquerda que a adesão popular e que o arriscar
do couro foi importante para a implementação
da democracia em Portugal. Bastava acrescentar ao Boradad'água
um folhetim com a história da democracia aos quadradinhos
e seríamos todos, sem excepção, democratas.
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