Donizete Rodrigues 1
e
José Carlos Almeida 2
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Terrorismo, racismo e violência
urbana
O ano de 2001 ficará célebre pelos acontecimentos
de 11 de Setembro, que traumatizaram o mundo e reavivaram
a polémica em torno do "Choque de Civilizações".
Apesar de lideres ocidentais como Bush ou Blair afirmarem
que a "guerra ao terrorismo" não é
uma guerra contra os muçulmanos, para o Primeiro-Ministro
italiano, Silvio Berlusconi, o problema para o Ocidente
não é o terrorismo ou o fundamentalismo
islâmico, mas sim o Islão como um todo. Que
infeliz afirmação.
Entre Cristianismo e Islamismo existiu no passado uma
forte influência recíproca ao nível
cultural. Mas a Europa, ao definir a sua cultura como
um renascimento das civilizações Grega e
Romana, desvalorizou a importante contribuição
árabe no seu processo civilizacional. No nosso
caso, o mito de origem da nacionalidade portuguesa, por
exemplo, baseia-se na ideia de um povo escolhido pelo
Deus católico para combater os "infiéis"
(leia-se judeus e mouros).
Os eventos de 11 de Setembro também influenciaram,
pela negativa, os debates sobre racismo, migrações,
asilo político, em muitas partes do mundo. Nos
EUA, palco dos trágicos atentados, foi arquivada
a proposta de uma legislação mais liberal
para regular a imigração e para garantir
uma maior privacidade das pessoas.
O debate mundial baseia-se na premissa de que há
algo de errado com a migração económica,
resultando em medos e preconceitos, esquecendo que tais
movimentos de pessoas trazem benefícios, quer para
os países de acolhimento quer para os países
de origem. O exemplo da reconstrução europeia
pós 2ª Guerra Mundial, e mais recentemente
em Portugal com os imigrantes dos PALOP e hoje do Leste,
mostra que houve um desenvolvimento económico e
social sem precedentes e isso só foi conseguido
graças ao grande fluxo de imigrantes. Também
não há evidência de que tais fluxos
migratórios constituam uma ameça ao "Estado
Providência", muito pelo contrário,
se estiverem legalizados, são contribuintes e não
dependendes da Segurança Social.
Outra consequência desta abordagem tem sido a "demonização"
das minorias étnicas. Isto é tanto mais
perigoso quando o clima eleitoral transforma a segurança
associada à imigração numa bandeira
eleitoral, como acontece um pouco por toda a Europa.
Um recente relatório acerca dos conflitos raciais
e étnicos que ocorreram no verão passado
na Inglaterra, apresenta algumas justificativas para a
violência urbana. A polícia e a comunicação
social são apontados como um dos principais responsáveis:
os media pela sobrevalorização do conflito
e, ao utilizar abusadamente termos que identificam grupos
étnicos, raciais e religiosos, pela etnicização
da criminalidade e a polícia pela não actuação
nas conhecidas zonas de tráfico de drogas e de
grande criminalidade.
O relatório apela também a dirigentes locais
para que promovam a coesão social e a participaçãp
política, argumentando que a ausência de
líderes locais levou ao crescimento do apoio popular
a partidos extremistas. Outra das críticas do relatório
é a segregação habitacional ("guetização")
e do tipo de sistema educacional monocultural (branco)
e da reprodução da desigualdade social.
Podemos tirar daí algumas lições?
Em Portugal é necessário fazer também
uma reflexão sobre os últimos dois meses
de violência urbana, culminando com a morte de um
polícia. O significado de tais cenas de violência
urbana ultrapassa o mero acontecimento policial. Elas
mostraram que Portugal não está imune as
cenas de violência racial que, anteriormente, só
eram vistas na TV. Bairros como as Fontaínhas ou
o Alto da Cova da Moura, cujos habitantes são maioritariamente
jovens e em cerca de 70% de origem cabo-verdiana, há
muito que se tornaram célebres como zonas de criminalidade.
Há uma enorme carga negativa associado a estas
"ilhas étnicas", pois os negros são
frequentemente encarados como uma ameaça à
segurança das pessoas.
As associações de moradores desses bairros
problemáticos afirmam que são duplamente
agredidos: pela própria polícia e pelos
marginais. Tudo isto tem aumentado, nos últimos
anos, a tensão entre moradores e polícia
e ao extremar de posições. Nestas áreas,
também as escolas se transformaram em escolas monoculturais
(negras), como, por exemplo, a escola nº 3 da Cova
da Moura, que chegou a ter apenas 7 estudantes brancos,
o que contribui para uma ainda maior segregação
racial.
Ao contrário do que pensam os mais optimistas,
o racismo em Portugal não é um problema
menor, passível de ser facilmente controlado, desde
que seja garantido o acesso a habitação,
educação e emprego. A formação
de milícias populares contra os ciganos e os últimos
acontecimentos com as jovens negros em Lisboa mostram
que o problema é mais complexo.
Quando a realidade actual é a construção
de sociedades multiculturais, a questão não
pode ser como vêr-nos livres dos "estranhos",
mas em como viver com a diferença, racial, étnica,
cultural, religiosa ... Sabemos viver com a diferença?
Há um mito de que Portugal é uma sociedade
não racista. No entanto, basta lembrar a presença
de ciganos durante séculos e a sua situação
de marginalidade no contexto da sociedade portuguesa.
Actualmente, são constantes as expulsões,
demolições de casas, destruição
de acampamentos, acções de discriminação
e rejeição dos ciganos.
Nos últimos anos, com o crescimento económico,
Portugal passou a ser um destino apetecível para
a imigração, o que tem causado também
tensões num país habituado a vêr-se
e a comemorar a nação como fazendo parte
duma área cultural lusófona em que o racismo
está ausente. Em sociedades pós-coloniais,
ideias acerca de diferenças inatas, étnicas
e raciais, são "re-importadas" e reemergem
quando povos das ex-colónias são incorporados
nos seus sistemas económico e político.
A grande contradição portuguesa está
no facto de que apesar do discurso lusotropicalista ter
substituido o discurso racista em voga no início
do século, a mentalidade colonial de encarar as
outras raças "atrasadas" e "não-civilizadas",
que serviram como legitimação do projecto
colonial e da nossa presença "civilizadora",
não mudaram na mesma medida e influenciam em muito
as opiniões em relação aos imigrantes
das ex-colónias. Com a modernidade tardia, e ao
tornar-se num país multicultural, Portugal também
não sabe lidar com a diferença. Mas existe
hoje algum país capaz de lidar com esse problema?
1- Antropólogo,
Professor Associado da Universidade da Beira Interior.
2 - Sociólogo, Doutorado pela Universidade de Bristol,
Inglaterra.
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