Entrou com 11 anos nos lanifícios e abraçou
este ramo toda a vida. João José Santos
conta como "naquele tempo", anos 50, os lanifícios
eram uma indústria atractiva e toda a gente "só
via o caminho da fábrica".
"Quando entrei, ganhava 66 escudos por semana. Nos
outros ramos ganhava-se 20 escudos por mês, portanto
a diferença era muito grande". Expressivo,
do centro dos seus grandes olhos azuis, este covilhanense
nascido e criado na cidade neve, recorda como nas grandes
fábricas da Covilhã, entravam todos os dias
cerca de 10 rapazes novos, os "aprendizes".
O objectivo era chegar a tecelão, onde se ganhava
mais. Foi esta a profissão que exerceu desde os
18 anos. "Começávamos de baixo, até
atingir o topo, ser tecelão, que era a minha profissão",
conta, não só sobre si, mas também
sobre os muitos colegas que tiveram percurso semelhante.
Naquela altura era normal, depois de concluída
a instrução primária, entrar para
os lanifícios, com 10 ou 11 anos. Toda a sua família
esteve sempre ligada à lã. O pai, a mãe
e os cinco irmãos. "Os pais precisavam, e
os filhos trabalhavam sempre para o "império".
Na minha família, os meus pais, os meus irmãos,
os meus tios, seguiram sempre a carreira dos lanifícios",
afirma, acrescentando que a Covilhã chegou a ser
conhecida como a "Manchester portuguesa".
Apesar da camaradagem que se criava, "naquele tempo
a fábrica era um bocado difícil", conta.
"Tínhamos de ir todos os dias buscar o almoço
a casa do mestre. Debaixo de vento, de chuva ou de neve",
recorda. Mas não era só o sacrifício
do clima. "Quando cometíamos um erro, chamavam-nos
ao "quarto", que era um gabinete, e davam-nos
um raspanete", lembra, apesar de achar que era "para
bem". Naquela altura, para descansar um pouco do
trabalho repetitivo a que estavam sujeitos, juntavam-se
na casa de banho. "Estávamos ali a conversar
sobre futebol. Era no tempo de Salazar, não se
podia falar em política. O pessoal que já
fumava aproveitava para fumar o seu cigarrinho, porque
não se podia fumar à frente dos tecelões,
era uma vergonha, tinham medo que dissessem aos pais,
e às vezes, até levavam um sopapo para ver
se passava o vício". Era assim que se distraiam,
mas, se fossem apanhados, sofriam castigo. "Usava-se
o sistema de descontar uma hora, ou ir meio dia de castigo.
Se fosse reincidente era um dia". Como não
se ganhava durante essa suspensão, ninguém
a queria apanhar.
"O trabalhador é sempre o mais fraco"
Também Ana Afonso Rato conhece o método
do castigo. Embora nunca tenha apanhado uma suspensão
durante os quase 30 anos que trabalhou na Nova Penteação,
viu colegas a apanharem-na injustamente.
"Tínhamos um fiscal que nos metia um medo
terrível. Lembro-me de uma rapariga que gostava
de se rir. Um dia, a rapariga estava a rir-se, e o fiscal
passou ao fundo da máquina, viu a rapariga a rir-se,
pensou que ela se estava a rir dele, deu-lhe logo três
dias de castigo. Se alguém barafustasse podia ser
ainda pior", relembra, referindo que estes fiscais
eram os enviados dos patrões para "trazerem
o pessoal controlado. Os patrões acreditavam mais
facilmente numa mentira deles do que numa verdade de um
operário".
Apesar de ter começado já com 25 anos, Ana
Rato, tímida mas com um olhar cheio de convicção,
não hesita em lembrar as dificuldades que passou
na vida da "fábrica", diferente da vida
que levava quando era "criada de servir", trabalho
que fez desde os 14 anos.
Antes do 25 de Abril, trabalhava 48 horas por semana,
incluindo sábados. Entrava na fábrica às
sete da manhã, e saía às três.
Como não se podia comer até à hora
de almoço, Ana lembra que levavam sempre qualquer
coisa no bolso. "Tínhamos de comer às
escondidas. Mas se aparecesse alguém e eu estivesse
a mastigar, tinha de parar, para não verem. Levávamos
ralhetes". Também para ir à casa de
banho havia regras rígidas: 10 minutos de manhã
e 10 à tarde.
Ana era operadora de máquinas e foi com facilidade
que arranjou emprego numa das maiores fábricas
de lanifícios da Covilhã. "Na altura
havia muita facilidade em arranjar emprego, muita oferta.
Chegaram a trabalhar na Nova Penteação mais
de mil pessoas", explica.
Agora desempregada, esta mulher que trabalhou quase 30
anos rodeada de teares e lãs, aprendeu que ontem,
como hoje, o trabalhador, "o mais pequeno é
sempre indiscutivelmente, o mais fraco. Embora hoje haja
liberdade de expressão. Já conhecemos os
nossos direitos e já não nos calamos",
assegura.
Crianças na Covilhã do início
do século XX, no caminho da antiga Empresa
Transformadora de Lãs
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Operários mobilizavam-se com boné
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Antes do 25 de Abril era proibido fazer greve, falar
livremente, contestar a autoridade. Mas muito antes desta
data histórica, os trabalhadores da Covilhã
já reivindicavam, embora simbolicamente. "Antigamente
os trabalhadores mobilizavam-se através de um boné.
Cada operário tinha um no seu posto de trabalho
e bastava um pôr o boné, todos os outros
o punham também e mobilizavam-se assim", explica
José Fernandes, do Sindicato dos Trabalhadores
da Beira Baixa, que entrou para a indústria dos
Lanifícios quando tinha apenas dez anos. "Não
havia aquela voz, como hoje há, não havia
sindicatos nem organizações. Mas havia alguém
que era o líder e controlava, através do
boné. Era uma forma de organização
encapotada", lembra.
Em balanço do Grémio dos Industrias de Lanifícios
da Covilhã, em Dezembro de 1972, havia 99 empresas
de lanifícios na cidade da Covilhã, que
empregavam seis mil 760 trabalhadores, só na cidade.
A Ernesto Cruz, actual Pólo das Ciências
Sociais e Humanas da UBI era uma das maiores fábricas
na altura e empregava 810 trabalhadores. Outra das grandes
industrias era a Lanofabril, onde trabalhavam 412 pessoas,
e a Empresa Transformadora de Lãs, actual Pólo
I da UBI, que empregava 451. A Nova Penteação,
maior em termos de empregabilidade, dava trabalho a 901
pessoas.
Em Abril de 1973, a Federação Nacional dos
Sindicatos do pessoal da Indústria dos Lanifícios,
em boletim informativo aos trabalhadores, pedia 3 mil
escudos de salário mínimo para este sector.
No mesmo mês do ano seguinte, a poucos dias da revolução,
havia 2720 sócios deste sindicato, na Covilhã,
dos quais 334 eram menores de idade.
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Durante o Golpe de Estado, em Lisboa, militares
e povo unidos pela liberdade
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"O dia 25 de abril não se esquece, foi indescritível".
Ana Afonso Rato conta como passou o dia da Revolução,
o primeiro dia da liberdade. "Foi incrível,
uma alegria enorme de sabermos que o governo fascista
tinha sido derrubado. Andava toda a gente na rua contente,
a alegria transparecia no rosto das pessoas".
Na fábrica, aquele dia de trabalho não chegou
ao fim "Por volta das duas horas da tarde, houve
uma ordem para toda a gente largar o trabalho e vir para
a rua, porque tinha acontecido um Golpe de Estado. Nem
sabíamos bem o que estava a acontecer", lembra.
João Santos conta como havia quem pensasse que
era "o fim do mundo". As pessoas já andavam
a contar que "não é tarde nem é
cedo", tinha de se mudar de regime. Mas foi uma coisa
inesperada. Muita gente não esperava que acontecesse
tão cedo, nem da forma como aconteceu, uma coisa
pacífica, sem batalhas, nem tiroteio. Na empresa
onde eu trabalhava, houve mulheres que, quando começaram
a ouvir nas notícias que Lisboa estava a ser invadida
por militares, ficaram a chorar e a gritar, achando que
era o fim do mundo", recorda e ri.
Nessa noite, muitas pessoas não dormiram. Queriam
acompanhar pela televisão e pela rádio o
que se estava a passar na capital. "Já podíamos
falar à vontade!".
Depois do 25 de Abril, a indústria de Lanifícios
começou a ressentir-se, reflexo do que se passava
um pouco por todo o País.
A última reunião do Grémio dos Industriais
de Lanifícios da Covilhã, realizou-se a
29 de Abril de 1974, quatro dias após a revolução.
Alguns membros duvidam da legalidade do seu funcionamento,
mas o então presidente do Grémio decide
continuar a sessão, considerando não haver
nada que constituísse ilegalidade até aquela
altura. A instituição acabou por desaparecer
em Julho.
Depois da revolução,
a recessão
Em Junho de 1974, um boletim de informação
do Serviço Nacional de Emprego (SNE), falava sobre
a crescente lacuna de postos de trabalho, consequência
do encerramento de várias empresas, e o resultante
crescimento do desemprego em Portugal, no qual a indústria
de Lanifícios representava um importante papel.
"Após o 25 de Abril, o mercado tem sido afectado
por um conjunto de factores, alguns dos quais já
se faziam sentir antes. Expectativa das actividades económicas,
estabelecimento do salário mínimo nacional,
problemas de crédito, contracção
do mercado interno, nalguns casos externo, falta de matéria
prima e surto de cólera têm sido apontadas
como causas de despedimento e não criação
de postos de trabalho", podia ler-se neste documento.
No fim de Junho havia no SNE 44 mil 420 pedidos de emprego,
para 14 mil 643 postos vagos. A oferta de emprego, como
reflexo das restrições à admissão
de pessoal manteve-se muito baixa, 3 mil 108, comparando
com o ano anterior, 5 mil 405. A quebra entre Maio e Abril
foi na ordem dos 50 por cento. Cerca de 6 mil e 700 pedidos
de emprego por empresas foram cancelados.
Naquela altura, a procura de emprego cresceu mais nos
distritos de Portalegre, Faro, Santarém, Bragança,
Aveiro e Castelo Branco (a procura aumentou 14,8 por cento)
e referiam-se, sobretudo, a trabalhadores indiferenciados.
Em Junho desse ano havia no distrito de Castelo Branco
menos 85, 4 ofertas de emprego. Os trabalhadores mais
atingidos pertenciam aos sectores da construção
civil (1356), têxtil (1101), vestuário e
calçado (975).
"Prevê-se a concretização a curto
prazo de maior volume de despedimentos", podia ainda
ler-se.
O período que decorreu entre 1974 e 1979 foi de
recessão para a indústria dos Lanifícios
em todo o País, nomeadamente no distrito de Castelo
Branco onde desapareceram 13 por cento das empresas, tendo
o emprego diminuído em 10 por cento.
Nos anos que se seguiram, as empresas foram encerrando
as portas, um pouco por todo o distrito.
Em 1979, o total de empresas no distrito de Castelo Branco
era de 96. Em 1982 passou para 89. Os operários
da indústria têxtil do distrito eram 7 mil
580, em 1979, e 7 mil e 34 em1982, o que representa um
decréscimo de 546 trabalhadores.
Os teares pararam pela primeira vez na Covilhã
pelo aumento de mil escudos no salário
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Covilhã exerce direito à greve
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A primeira greve pós 25 de Abril foi pelo aumento
de mil escudos no salário. "Íamos para
o local de trabalho e estávamos lá permanentemente,
mas sem trabalhar. Foi uma união bestial, e conseguiram-se
os mil escudos de aumento", lembra Ana Rato.
Os tempos que se seguiram à revolução
foram para esta operária "uma época
de liberdade em que deitámos cá para fora
tudo o que estava preso dentro de nós".
Na opinião desta ex trabalhadora da Nova Penteação,
o que levou ao encerramento de tantas empresas naquela
altura não teve qualquer relação
com as reivindicações que marcaram os anos
seguintes, mas sim com a má administração
de muitas empresas.
"As empresas que não se modernizaram não
tiveram suporte para aguentar as mudanças do mercado".
A falta de modernização e a má administração
são os motivos que indica como responsáveis
"na altura e também agora".
Apesar da fase "muito má" que se atravessou
na indústria dos lanifícios nos anos que
se seguiram à revolução, "foram
as empresas mais pequenas que começaram a fechar.
Ainda havia um mercado de trabalho onde as pessoas se
podiam encaixar. Isso hoje já não acontece,
é muito mais difícil", considera.
João Santos concorda com a teoria de má
administração e acredita que se assim foi
na altura, é ainda hoje o que está por trás
do encerramento de muitas empresas. "Houve industrias
que conseguiram fazer fortunas e começaram a entregar
as empresas, na minha opinião, muito cedo, aos
filhos. Regra geral, excepto um ou outro caso, poucos
deram continuidade. Pensavam que os lanifícios
estavam sempre a dar dinheiro e que os outros países
não se iriam também apetrechar. A Covilhã
chegou a ter mais de duzentas empresas. Hoje tem 10 ou
15 empresas de lanifícios", salienta.
Uma visão diferente sobre a revolução
José Manuel Mota Pereira Nina tem 65 anos. Foi
com 16 que ingressou no mundo dos lanifícios. No
entanto, o seu percurso foi diferente. Quando entrou,
o pai, já industrial, tornou-o sócio da
empresa. De postura segura e carismática, embora
gentil, conta, num tom esclarecido, a passagem para a
liberdade, que prejudicou bastante o seu negócio.
Para este industrial "o 25 de Abril foi a nossa desgraça",
diz, referindo-se à falência da Ninafil,
propriedade sua e dos irmãos, na altura. "Graças
ao 25 de Abril, ficaram-nos a dever nessa altura cerca
de 400 mil contos. Nós não aguentámos".
As empresas foram falindo. "Só na Covilhã
desapareceram setenta e tal empresas, no prazo de quatro
anos". O recurso a empréstimos bancários
com elevados juros, única saída de muitos
industrias, e uma greve que quase paralisou as empresas
durante um mês, são apontados por este industrial
como factores que contribuíram para o fim de muitas
empresas. "Foram dias que causaram um bocado de pavor
na Covilhã. Os trabalhadores ficaram 30 dias sem
trabalhar e sem deixar trabalhar". Nessa altura já
fazia parte da ANIL. "Ia buscar pessoal às
cinco da manhã que queria trabalhar, e encontrava
várias vezes barreiras que impediam. Era preciso
ir mandar buscar alimentação porque os operários
não podiam sair da fábrica. Estavam cá
fora à espera deles", recorda.
A greve aconteceu em 76, altura em que houve casos de
violência. "Um industrial atingiu a tiro um
operário que estava a partir os vidros da fábrica".
Mas houve também o inverso. "Lembro-me de
um caso, na empresa Lanofabril, em que o patrão
esteve sequestrado na fábrica durante vários
dias".
Entretanto, outros problemas relacionados com os salários
começavam a ter lugar na Covilhã. A Ernesto
Cruz empregava cerca de 600 operários e em determinada
altura, alegando dificuldades financeiras, não
pagou os salários. "Foi a primeira na Covilhã",
lembra José Nina, e continua, "os trabalhadores
decidiram ir ao Banco e exigir o pagamento dos salários.
A partir daí, não era preciso pagar, porque
os operários iam ao Banco buscar o dinheiro".
Um período de crise e
de medo
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No actual Pólo I da
UBI, onde funciona o museu de lanifícios
laborava a Empresa Transformadora de Lãs,
uma das maiores da Covilhã
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José Nina acredita que o 25 de Abril contribuiu
para a situação de encerramento de várias
indústrias. "Havia muito desânimo das
pessoas que não tinham encomendas, tinham medo,
e muitas não tiveram hipótese de acompanhar
a evolução. Se era preciso dinheiro tinha
de se ir aos bancos pedir, isso custava juros muito elevados.
Só singraram as firmas que nunca precisaram de
recorrer à banca".
O maior período de crise, na opinião deste
empresário ligado às lãs há
quase 40 anos, foi entre 1975 e 76, mas foi também
aí que se começou a fazer a "filtragem
das indústrias". "Nós tínhamos
muito mais de cem associados na ANIL, e hoje restam 30",
afirma.
Em 1987, um estudo sobre a indústria de Lanifícios
da Beira Interior afirmava que esta era constituída
por 20 mil trabalhadores, dos quais 48 por cento eram
mulheres, e 11 por cento tinham mais de 55 anos.
Nessa altura, era já visível uma incapacidade
para fazer frente aos crescentes aumentos dos custos,
demonstrando esta industria fraca competitividade face
ao mercado único da União Europeia e também
ao exterior.
O mesmo estudo refere que metade das indústrias
de lanifícios do distrito de Castelo Branco se
situam no concelho da Covilhã. Aqui, 77 por cento
das empresas classificavam-se como "Piores empresas",
ou "Empresas de difícil Recuperação",
numa escala decrescente que ia das "Melhores empresas"
até às "Piores empresas", passando
pelas "Empresas recuperáveis" e pelas
"Empresas de difícil Recuperação".
Entre 1989 e 1993, encerraram ou paralisaram no concelho
da Covilhã 25 empresas, entre as quais algumas
das maiores. A Empresa Transformadora de Lãs, empregadora,
na altura, de 176 trabalhadores, a Lanofabril, com 270
trabalhadores e a Ernesto Cruz, com 223 trabalhadores,
entre outras de menor dimensão, deixaram sem actividade
profissional 1324 trabalhadores.
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