O
acelerado crescimento urbano que tem caracterizado a nossa
história recente, para além de alterar profundamente
os padrões por que se rege a nossa vida em sociedade,
fez ainda estilhaçar, numa multiplicidade tipológica,
o conceito de cidade que herdámos da Revolução
Industrial. Todavia, actualmente, apesar da coexistência
desta diversidade de modelos urbanos, é de salientar
que, em quase todos eles, os ideais clássicos que
caracterizaram tanto a pólis grega como a urbe romana
constituem ainda os valores perenes por que se pauta a sua
qualificação.
As nossas cidades materializam e reflectem, quais espelhos,
tanto as nossas realizações como as nossas
expectativas de vida e, por esse motivo e em função
de umas ou de outras, ao longo do tempo, vão-se transformando.
Nas suas ruas e praças vão-se inscrevendo
as linhas de força que estruturam a identidade comunitária
que as alimenta, entrecruzando ainda as dimensões
de passado, presente e futuro.
Por todas estas razões, acompanhar a concretização
urbanística de uma nova fase da evolução
da Covilhã, como aquela a que actualmente se assiste,
através da bem visível valorização
da Praça do Pelourinho, enquanto espaço de
convivialidade e símbolo identitário por excelência
da cidade, constitui uma experiência gratificante,
que não pode deixar-nos indiferentes.
Covilhã: pólo agregador
Desde o séc. XII que, nesta encosta protegida
da Serra da Estrela, a Covilhã se constituíra
como o pólo agregador de uma vasta área,
delimitada pelas montanhas que sobressaiem na Cova da
Beira (Estrela e Gardunha), pelos percursos dos rios Zêzere
e Tejo, afrontada ainda pela autoridade dos reinos de
Leão e Castela e pelo poderio militar da moirama.
O seu concelho transformara-se, já então,
"no núcleo mais importante da vertente oriental
da Serra da Estrela" (1), porque o alfoz se estruturara
a partir de um espaço rico de diversidades e propício
a uma auto-subsistência, garantida pelas actividades
agro-pastoris, pela caça, pela pesca, pelo abastecimento
de lenhas e pela abertura à penetração
mercantil. A montanha, de muralha alterosa, de fronteira
e de escudo cristão, transformara-se na matriz
desta vasta região a que traçara um perfil
que foi sendo sedimentado, ao longo dos tempos, pelo labor
e engenho dos homens que, face aos condicionalismos ambientais,
se afeiçoaram na prática dos lanifícios.
A Serra da Estrela, propiciando aos gados os pastos naturais,
foi ponto de encontro dos grandes trajectos da transumância,
ofereceu a matéria-prima, a "bondade"
das suas águas e facultou as lenhas que favoreceram
a especialização no fabrico dos panos. Neste
contexto a Covilhã, através da dinâmica
empresarial e da talentosa especialização
da sua mão-de-obra, foi assumindo o papel de centro
polarizador, granjeando um lugar de destaque na economia
nacional, transformando-se no centro histórico
dos lanifícios portugueses. Foram, de resto, estes
que justificaram, em 20 de Outubro de 1870, junto do poder
central, a sua elevação a cidade.
"Cidade Granja"," cidade fábrica"
O tecido urbano da Covilhã foi-se desenvolvendo,
ao longo do tempo, na ambivalência de uma "cidade-granja
/ cidade-fábrica", segundo a descrição
lapidar de Manuel Nunes Giraldes (2). Foi esta fértil
complementaridade entre os espaços rural e urbano
uma das maiores potencialidades da Covilhã, até
aos finais do séc. XIX. A partir de então,
por condicionalismos vários, mas sobretudo por
acção de alguns covilhanenses de mérito,
a Covilhã ir-se-á especializar, até
aos anos oitenta do séc. XX, como "cidade-fábrica".
Foi este um dos períodos mais marcantes da história
da cidade. Com a proliferação das fábricas
e o desenvolvimento dos lanifícios moldou-se-lhe
a alma industrial, transformando-se num espaço
tanto física como socialmente diferenciado no panorama
urbano nacional. Todavia, só agora, nos alvores
do séc. XXI, se transforma verdadeiramente num
espaço socialmente harmonizado, apresentando-se
como uma nova Pólis, onde as funções
urbanas se colocam finalmente ao serviço da qualidade
de vida dos seus habitantes.
O transcurso desta história, como a própria
natureza do lugar, foram sendo sempre sublinhados a traço
grosso e a cores fortes, face à sobrecarga do trabalho
dos operários e às inusitadas expectativas
dos industriais. Até à actualidade a fábrica
foi o cenário natural em que se desenrolou a vida
de todos eles. Mas foi também, e sobretudo, o núcleo
de uma conflitualidade latente e contínua e a raiz
da profunda clivagem social e do próprio modelo
de desenvolvimento urbano. A estratificação
social que ela gerava transpunha-se para os espaços
públicos e assim, no Pelourinho, juntavam-se os
que, encostados ás grades, despojados, assistiam,
ressentidos, ao passar das horas sempre iguais e os que
freneticamente por ali passavam, em automóveis
de último modelo, glosando a dimensão afirmativa
do "ter".
As intervenções no Pelourinho
Este longo processo repercutiu-se na organização
do tecido urbano da Covilhã e inscreveu-se claramente
nas transformações sucessivas a que foi
sujeito o Pelourinho.
Esta Praça, adjacente ao casco medieval, vai-se
desenvolvendo ao ritmo do crescimento urbano e, desde
o séc. XVI até à actualidade, assumiu-se
como o coração da cidade e o centro do poder
autárquico, através da implantação
do próprio Pelourinho, enquanto manifestação
expressiva da autonomia e da liberdade concelhias.
Desde o séc. XVII até à actualidade,
esta Praça fez-se e refez-se ao sabor e gosto das
elites locais, que não resistiram a inscrever-lhe,
porque referência simbólica por excelência
da cidade, a sua passagem pelo poder.
Foi o mercado abastecedor da "cidade-granja / cidade-fábrica"
até aos anos 40 e 50 do séc. XX quando,
após a mais agressiva das intervenções
que sofreu, se veio a transformar no centro económico,
social e político da "cidade-fábrica".
A nova Praça, demarcada pelos edifícios
da Câmara e do Montalto, viu então nascer
outras construções que lhe redefiniram e
enfatizaram estas funções, como é
o caso dos antigos Correios e da Caixa Geral de Depósitos,
transformando-se, após diversas e profundas intervenções,
que não resistiram ao tempo, numa ostensiva placa
destinada ao estacionamento e à circulação
dos automóveis.
Nos anos 70 e 80, acompanhando as profundas alterações
do tecido sócio-económico da cidade, geradas
pela crise e pela subsequente reestruturação
dos lanifícios, o Pelourinho foi ainda palco de
novas remodelações que bem patentearam o
desânimo colectivo quanto ao futuro da que se augurava
então como "cidade fantasma". Refugiando-se
no bálsamo do passado, às referências
a Frei Heitor Pinto e à memória da viagem
de Pêro da Covilhã faltou então assinalar
a dimensão do presente e do futuro.
Todavia, à medida que a ideia de Universidade se
vai corporizando, a Covilhã, qual Fénix
renascida, começa a erguer-se das ruínas
das fábricas e, timidamente, vai assumindo, no
tecido urbano, a par de ostensivas manifestações
de um excessivo crescimento desordenado, a evidência
do seu profundo processo de mudança. É o
período em que, curada das feridas, ela extravasa
para as suas franjas, no sopé da colina. É
esta cidade, de renovada esperança, que se vislumbra
hoje no novo Pelourinho ainda inacabado, mas já
visivelmente em sintonia com as duas vertentes que alicerçam
o seu presente: uma indústria de lanifícios
solidamente ancorada no passado e que se projecta vigorosamente
no futuro; uma dinâmica universidade que é
o suporte científico do desenvolvimento sustentado
não só da cidade como de toda a região
em que se insere.
Nuno Teotónio Pereira: um êxito na renovação
do Pelourinho
Da autoria do Arquitecto Nuno Teotónio Pereira,
a recente intervenção de requalificação
do Pelourinho, constitui uma referência assinalável,
pela elevada qualidade de que se reveste, na tão
acidentada história das alterações
urbanísticas da Covilhã.
Para além de se apresentar como um dos projectos
de mais difícil realização, tantas
as condicionantes constrangedoras que teve que equacionar
e assumir, constituiu certamente para o seu autor um desafio.
Todavia Nuno Teotónio Pereira, com a experiência
e talento que lhe conhecemos, fruto de uma alargada mundividência
cultural, alicerçada na mais profunda formação
e prática humanistas, ganhou-o para que todos nós
possamos fruir desta obra.
O programa proposto visava refuncionalizar e renovar a
Praça. Construir um parque de estacionamento apresentava-se
como um incontornável imperativo de natureza económica
e política, justificado ainda por razões
de gestão urbanística, tendo em vista a
reanimação do tecido urbano antigo. Nuno
Teotónio Pereira realizou-o com êxito, minimizando-lhe
os efeitos de maior impacto. Restava-lhe requalificar
a Praça, missão quase impossível,
tão diversas e dissonantes eram as sobras das alterações
urbanísticas precedentes.
Com uma intervenção que podemos classificar
de minimalista, Nuno Teotónio Pereira conseguiu
harmonizar a amálgama caótica em que se
transformara o desarticulado Pelourinho, assim como reabilitar
os velhos espaços e ampliá-los ainda através
de uma integração uniformizadora com os
que foram abarcados nas áreas circundantes da Igreja
da Misericórdia e ainda da velha Praça do
Largo 5 de Outubro. Deste modo, reenquadrou a Igreja e
devolveu-nos um Pelourinho mais amplo e harmonioso, em
cujo redimensionamento se reflecte o recente desenvolvimento
sócio-económico e cultural da Covilhã.
Valorizou as evidências patrimoniais e refrescou
o passado, conjugando-o ainda com algumas referências
estéticas da nossa contemporaneidade, numa convivência
e diálogo salutares entre tradição
e inovação. Não confundiu a preservação
do património com conservadorismos serôdios
que advogam paragens artificiais no tempo, que, por natureza,
não pode aprisionar-se.
Modernidade e dimensão humana
Nuno Teotónio Pereira demarca-se ainda, nesta
intervenção, das perspectivas utilitaristas
do novo-riquismo cultural, tão em voga na nossa
arquitectura contemporânea.
A modernidade é introduzida pelo elemento novo
e à primeira vista dissonante que constitui a escultura
emblemática de Irene Buarque. É ela que
demarca o coração da nova Praça e
corporiza em mármore os fundamentos da nova cidade
que na Covilhã se está a erguer das ruínas
do passado. Daí a incompreensão de quantos
ainda nela se não revêem
Contudo pode
considerar-se uma obra de referência, que a ninguém
deixa indiferente pela originalidade de que se reveste,
perturbando mesmo alguns. Delimita esteticamente um espaço
que não aprisiona, antes se oferece para poder
ser fruído pelos que a atravessam e a admiram dos
mais diversos ângulos da Praça. Esta obra
permite uma leitura dinâmica, acentuada pela abertura
com que se apresenta, assim como pela impressão
de movimento que transmite e pela modulação
harmoniosa dos elementos de que se compõe.
* Directora do Museu de
Lanifícios da UBI e Co-Coordenadora do Programa de
Inventariação do Património Industrial
da Covilhã
|