Pedro Homero

Clinicamente mortos


A nossa espécie é para-lá-de estranha (em inglês soa melhor, beyond weird). Temos umas capacidades únicas no planeta. Decidimos chamar-lhes 'racionalidade' e 'consciência'. São uma faca de dois gumos, o que significa que estamos a falar de algo interessante, pois claro. Com elas compomos sinfonias, construimos catedrais, salvamos os esfomeados. Com elas, ou apesar delas, lançamos bombas atómicas, dedicamo-nos ao extermínio calculado dos povos que não gostamos e escravizamos milhões de animais. E assim vamos vivendo.
No cerne desta questão, e apesar de não gostar de soluções milagrosas do género 'eis o culpado de tudo', não consigo resistir à tentação de apontar o dedo (também) à religião colectiva. Não me refiro à espiritualidade mais ou menos presente nos seres humanos, nem à necessidade que muitos humanos têm de encontrar uma resposta metafísica para as grandes questões da existência. Refiro-me antes às organizações colectivas religiosas, e ao seu modo de operar.

Uma religião colectiva apresenta aos seus crentes um mapa do território. Tá aqui. Dependendo do grau de elasticidade da religião, o crente tem mais ou menos espaço de manobra para interpretar a 'verdade' que lhe é apresentada. Às vezes não tem, nos casos em que a ideia é tomar as palavras no seu sentido literal. Como no caso dos fundamentalistas cristãos americanos que não querem que a evolução seja ensinada na América*. As religiões retiram (nos piores casos) ou limitam (nos casos light) ao crente a capacidade de julgar por si próprio, de analisar e por em causa as 'verdades' que lhe são apresentadas. Desde o católico que 'sabe' que Deus existe e que conhece as Suas características até ao fanático muçulmano que 'sabe' que Deus quer ver todos os judeus mortos, só para citar dois exemplos, há toda uma matéria-prima humana pronta a servir uma ideia sem a questionar. Assim, a necessidade que temos de respostas fáceis e conclusivas acerca do desconhecido acaba por ser a maior amiga dos finórios conhecidos genericamente por 'líderes espirituais'. Com uma base ignorante e não-habituada/não-encorajada a pensar, podemos fazer tudo o que quisermos. Podemos colocar kalashnikovs nas mãos de crianças (ou melhor ainda, coloca-las em frente aos tanques inimigos, para que os media filmem tudo). Podemos 'evangelizar' povos inteiros, quer queiram quer não. Podemos abusar sexualmente do nosso rebanho - provavelmente seremos apenas admoestados e a hierarquia abafará o caso, tudo em nome da 'nossa' igreja.
Claro que as religiões colectivas também têm um lado positivo. Muitas são responsáveis por verdadeiros casos de ajuda ao próximo, seja a nível local seja em partes distantes do planeta. Algumas procuram resolver os problemas do seus crentes de um modo não-violento e outras há até que advogam compaixão para com todos os seres sensíveis. Uma pergunta, no entanto, parece-me na ordem do dia: precisamos mesmo desses organismos? Precisamos mesmo de papás que nos digam o que está 'certo', o que está 'errado'?
Há uns dias vi um fundamentalista cristão na televisão a afirmar que a dúvida numa parcela da Bíblia é o príncipio da dúvida em todo o livro e (agora é que tem piada) o príncipio do fim da ética e da moralidade nos 'nossos jovens'. Estranho, tinha a sensação que a moral e a ética poderiam vir das nossas capacidades individuais que respondem pelo nome de 'racionalidade' e 'consciência'. É daí que vem a minha ética, e não de 'verdades' impressas em livros de ficção. E não é por isso que é 'melhor', ou 'pior'. É minha, cheguei a ela, não a engoli. E tem a vantagem de não estar pré-definida, mas sim de ser mutável, não ao sabor do vento, mas conforme o que vou descobrindo acerca de mim, dos humanos e do que nos rodeia. E que portanto não se acha 'certa', nem 'errada', mas que é muito honesta, lá isso é. A partir do momento em que paramos de questionar estamos clinicamente mortos.


* explicação: algumas religiões cristãs fundamentalistas dos EUA acreditam literal e completamente na bíblia. Assim, se lá diz que Deus fez o mundo em 6 dias é porque fez, e acabou. E que fez um (1) homem chamado adão e uma (1) mulher chamada Eva. Ponto.
Assim, ensinar às crianças / jovens que provavelmente isto começou tudo com um Big Bang e que evoluimos a partir de outras espécies é fazer o trabalho do Diabo © e lutam activamente para que tal sacrilégio seja retirado dos programas escolares, propondo, ao invés, que se ensine o que a Bíblia nos diz.