|
Clinicamente mortos
A nossa espécie é para-lá-de estranha
(em inglês soa melhor, beyond weird). Temos
umas capacidades únicas no planeta. Decidimos chamar-lhes
'racionalidade' e 'consciência'. São uma
faca de dois gumos, o que significa que estamos a falar
de algo interessante, pois claro. Com elas compomos sinfonias,
construimos catedrais, salvamos os esfomeados. Com elas,
ou apesar delas, lançamos bombas atómicas,
dedicamo-nos ao extermínio calculado dos povos
que não gostamos e escravizamos milhões
de animais. E assim vamos vivendo.
No cerne desta questão, e apesar de não
gostar de soluções milagrosas do género
'eis o culpado de tudo', não consigo resistir à
tentação de apontar o dedo (também)
à religião colectiva. Não me refiro
à espiritualidade mais ou menos presente nos seres
humanos, nem à necessidade que muitos humanos têm
de encontrar uma resposta metafísica para as grandes
questões da existência. Refiro-me antes às
organizações colectivas religiosas, e ao
seu modo de operar.
Uma religião colectiva apresenta aos seus crentes
um mapa do território. Tá aqui. Dependendo
do grau de elasticidade da religião, o crente tem
mais ou menos espaço de manobra para interpretar
a 'verdade' que lhe é apresentada. Às vezes
não tem, nos casos em que a ideia é tomar
as palavras no seu sentido literal. Como no caso dos fundamentalistas
cristãos americanos que não querem que a
evolução seja ensinada na América*.
As religiões retiram (nos piores casos) ou limitam
(nos casos light) ao crente a capacidade de julgar
por si próprio, de analisar e por em causa as 'verdades'
que lhe são apresentadas. Desde o católico
que 'sabe' que Deus existe e que conhece as Suas características
até ao fanático muçulmano que 'sabe'
que Deus quer ver todos os judeus mortos, só para
citar dois exemplos, há toda uma matéria-prima
humana pronta a servir uma ideia sem a questionar. Assim,
a necessidade que temos de respostas fáceis e conclusivas
acerca do desconhecido acaba por ser a maior amiga dos
finórios conhecidos genericamente por 'líderes
espirituais'. Com uma base ignorante e não-habituada/não-encorajada
a pensar, podemos fazer tudo o que quisermos. Podemos
colocar kalashnikovs nas mãos de crianças
(ou melhor ainda, coloca-las em frente aos tanques inimigos,
para que os media filmem tudo). Podemos 'evangelizar'
povos inteiros, quer queiram quer não. Podemos
abusar sexualmente do nosso rebanho - provavelmente seremos
apenas admoestados e a hierarquia abafará o caso,
tudo em nome da 'nossa' igreja.
Claro que as religiões colectivas também
têm um lado positivo. Muitas são responsáveis
por verdadeiros casos de ajuda ao próximo, seja
a nível local seja em partes distantes do planeta.
Algumas procuram resolver os problemas do seus crentes
de um modo não-violento e outras há até
que advogam compaixão para com todos os seres sensíveis.
Uma pergunta, no entanto, parece-me na ordem do dia: precisamos
mesmo desses organismos? Precisamos mesmo de papás
que nos digam o que está 'certo', o que está
'errado'?
Há uns dias vi um fundamentalista cristão
na televisão a afirmar que a dúvida numa
parcela da Bíblia é o príncipio da
dúvida em todo o livro e (agora é que tem
piada) o príncipio do fim da ética e da
moralidade nos 'nossos jovens'. Estranho, tinha a sensação
que a moral e a ética poderiam vir das nossas capacidades
individuais que respondem pelo nome de 'racionalidade'
e 'consciência'. É daí que vem a minha
ética, e não de 'verdades' impressas em
livros de ficção. E não é
por isso que é 'melhor', ou 'pior'. É minha,
cheguei a ela, não a engoli. E tem a vantagem de
não estar pré-definida, mas sim de ser mutável,
não ao sabor do vento, mas conforme o que vou descobrindo
acerca de mim, dos humanos e do que nos rodeia. E que
portanto não se acha 'certa', nem 'errada', mas
que é muito honesta, lá isso é. A
partir do momento em que paramos de questionar estamos
clinicamente mortos.
* explicação: algumas religiões cristãs
fundamentalistas dos EUA acreditam literal e completamente
na bíblia. Assim, se lá diz que Deus fez
o mundo em 6 dias é porque fez, e acabou. E que
fez um (1) homem chamado adão e uma (1) mulher
chamada Eva. Ponto.
Assim, ensinar às crianças / jovens que
provavelmente isto começou tudo com um Big Bang
e que evoluimos a partir de outras espécies é
fazer o trabalho do Diabo © e lutam activamente para
que tal sacrilégio seja retirado dos programas
escolares, propondo, ao invés, que se ensine o
que a Bíblia nos diz.
|