|
Direita, esquerda... globalizar!
Quando os primeiros barcos aportaram
em África ficámos a conhecer um mundo novo,
homens novos, diferentes, "exóticos".
Até mesmo os intelectuais se ressentiram de uma
visão etnocêntrica que definia o eu como
civilizado e o outro como bárbaro. Na Antropologia
criava-se a ideia do "primitivo" e na linguagem
de senso comum a de atrasado. Dizia-se que o negro tinha
características sexuais invulgares, não
por dotes próprios, mas porque era associado pelos
europeus ao chimpanzé e à sua reconhecida
energia sexual.
Estas são apenas algumas das marcas que definem
o chamado pensamento ocidental ou a civilização
ocidental. Não é fácil definir civilização
no contexto socio-político da modernidade, assim
como não é fácil definir o seu epicentro.
É mais que claro que os Estados Unidos, sobretudo
desde o pós-Guerra, têm procurado impor um
modelo económico, social e político de tal
modo forte que se afirmou com carácter civilizacional.
George Ritzer chama-lhe "macdonaldization",
muitos entendem o processo "civilizacional"
como um instrumento de repressão do self, mas alguns
consideram-na a legítima conquista do mais forte.
Consideram-na a emergência de um novíssimo
paradigma, como se o hambúrguer a transbordar de
maionese ganhasse um novíssimo encanto. As histórias
de caminheiros resumem-se muitas vezes ao acto de abrir
a cortina da carruagem e apreciar a paisagem, não
de pensar a paisagem. Viver num mundo que se julga perfeito,
porque não existe outro ou porque somos felizes
neste é, no mínimo, entediante, mas sobretudo
cómodo, porque acrítico.
Conjugar crescimento económico com globalização
é excelente, sobretudo do ponto de vista dos neo-liberais,
que insistem que a globalização se resume
à mundialização económica
(cujo epicentro é supostamente desconhecido). A
relação entre o nacionalismo dos conservadores
e o neo-liberalismo resulta tão bem quanto a de
democracia e liberalismo. Dado que quem cá está
já não aceita tudo, que venham outros, mais
"fortes" e mais baratos. Se os de cá
exigem "demasiados" direitos sociais, ou se
o Estado exige "demasiado" rigor fiscal, deslocaliza-se
a produção para onde (pelo menos por enquanto)
os direitos sociais não existem. Quando o desemprego
bate à porta, a culpa é dos imigrantes,
não de quem deles depende para o crescimento económico,
nem de quem fechou cá para abrir lá. Um
dia, a direita viu-se confrontada com a transformação
do conceito clássico de soberania e o conceito
de Estado-Nação tornou-se difuso. Abram-se
pois as fronteiras aos fluxos económicos, mas fechem-se
aos fluxos migratórios. Afinal, parece que René
Dumond tem alguma razão ao defender que a pobreza
está a "subir" dos países do Sul
para os países do Norte mas não é
trazida pelos fluxos migratórios, mas por um modelo
centrado no económico que acarreta instabilidade
inclusive nos países "desenvolvidos".
O modelo liberal, assente na ideia do mais forte, não
se aplica mundialmente. A direita, quando é liberal,
aceita a imigração porque por cá
já nem todos se sujeitam, quando é conservadora
culpabiliza a imigração. Não fossem
os desgraçados dos movimentos sociais e não
seriam necessários imigrantes, pensam. Quinhentos
anos depois, os exóticos povos do empobrecido Sul
chegam às nossas costas marítimas em viagens
ainda assim mais tortuosas que as das naus desse tempo.
Não nos acham exóticos, acham-nos fantásticos,
até se aperceberem que são uma vez mais
objecto de uso e de estigmatização. Criminosos,
delinquentes é o que são, diz-se. Se entendermos
a delinquência como resultado de uma incapacidade
em integrar e inserir socialmente, a resposta será
bem mais clara, ainda que menos simplista ou popular.
Por outro lado e por influência de alguns dos pensadores
que emergiram dos próprios países sub-desenvolvidos
a esquerda foi sempre mais favorável a uma relativização
do processo de globalização e à procura
de soluções alternativas. Ainda assim, teve
dificuldades em se desligar da ortodoxia marxista e, nomeadamente,
do materialismo histórico. A ideia de "operários
de todo o mundo uni-vos" era moldada para a sociedade
industrial de Engels (que conhecera as condições
dos trabalhadores na Inglaterra) e por Marx (que se propusera
a definir um socialismo científico que se contrapusesse
em simultâneo ao capitalismo e ao socialismo utópico).
A própria ideia de classe como conceito chave e
operacional da mudança social perde sentido (do
mesmo modo que o perde hoje nas sociedades ocidentais).
Como na maioria dos países subdesenvolvidos o proletariado
não reunia as mesmas condições para
a sua mobilização colectiva e a ideia de
industrialização era inexistente, adaptou-se
o modelo marxista ao campesinato e chamou-se-lhe neo-marxismo.
Ainda assim, o raciocínio era idêntico -
cabe aos camponeses operar a mudança, numa luta
contra o capital, não só interno, como externo.
A negação do capitalismo é, no entanto,
incompatível com a sua afirmação
e em nada contribui para a sua rediscussão. O capitalismo,
tal como a globalização, afirmou-se como
um processo irreversível. A luta de classes não
eliminou o capitalismo como o supunham deterministicamente
os marxistas ortodoxos, mas adaptou socialmente o capitalismo.
No cenário da globalização, a esquerda
ortodoxa está igualmente baralhada e parece não
encontrar alternativas ao materialismo histórico.
O capitalismo não tem em si o gene da sua própria
destruição, mas da sua própria manutenção.
Daí a importância de um pensamento crítico
relativamente ao capitalismo e não a sua teimosa
negação ou a sua aceitação
sem mais. Trata-se de uma responsabilidade em adequá-lo
socialmente, seja pelos intelectuais, seja pelos ditos
"arruaceiros", como aqueles que garantiram a
diversidade de direitos sociais que nos distanciam do
subdesenvolvimento, que garantiram iguais direitos às
mulheres, sustentabilidade ambiental ao desenvolvimento
ou igualdade entre raças. Vitória dos mais
fortes? Talvez, mas lenta, gradual, modeladora, não
tirana ou impositiva, mas democraticamente necessária,
uma das responsabilidades fundamentais de quem nasce neste
mundo, sinta-se ou não feliz por viver nele.
|