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O "lugar" da mulher
"Qual é, então,
o lugar da mulher?" Éramos vários,
homens e mulheres, em torno de uma mesa, puxando assuntos
ao som pouco ambiente e mesclado de jazz de um dos bares
mais agradáveis da Covilhã. As várias
mulheres com que nos havíamos cruzado na rua, e
que também ali eram presença dominante,
trouxeram à conversa o Dia Internacional da Mulher,
celebrado a 8 de Março - que este ano calhou à
sexta, fazendo antever uma noitada mais liberta às
centenas de mulheres que aguardavam nos bares a hora do
striptease masculino, com que as discotecas locais celebram
a data. Falavam os homens, a esse propósito e com
certa inconveniência, de uma "libertação
das sopeiras", que neste dia abandonam os maridos
em casa e vão beber, dançar e curtir a efémera
e questionável liberdade - muitas não saindo
sem antes ter alimentado a família, prevenindo
assim a confusão já adivinhada nas "suas"
cozinhas, território ainda tão pouco familiar
para tantos homens.
"Qual é, então, o lugar da mulher?"
Creio que na altura ainda respondi qualquer coisa, mas
intimamente concluí que, enquanto esta pergunta
continuar a ser formulada, enquanto se considerar a existência
de um espaço feminino, fará sentido existir
um Dia Internacional da Mulher - por muito que ele tantas
vezes nos pareça mais uma forma de calar as "sopeiras"
e as colocar no seu "lugar".
A condição feminina foi, é e será
sempre - sobretudo - uma questão de mentalidades.
Claro que a conquista de um estatuto jurídico foi
crucial para o estabelecimento de direitos fundamentais
à definição da identidade e dignidade
da mulher enquanto ser humano e cidadã. Mas a identificação
do indivíduo com as leis é demorada, muitas
vezes não chega a acontecer - o que se sente com
particular acuidade numa situação cuja convivência
histórica inscreveu na mente e na alma como "normal".
Claro que o que era normal há um século
não é hoje - e também por isso muitas
mulheres sentem que já não faz sentido existir
um Dia Internacional da Mulher. Mas esta mulher portuguesa
do início do século XX é não
só a maioria instruída que invadiu universidades
e mercado de trabalho mas também a mulher cujo
sexo, à revelia da lei, continua a determinar um
salário inferior ao do colega de trabalho (homem)
que com ela executa as mesmas funções, pelo
mesmo período de tempo; a mulher que, a nível
europeu, menos ajuda tem na divisão das tarefas
domésticas; a mulher que não é promovida
porque o facto de ter uma família à sua
responsabilidade não a torna "disponível"
para trabalhar horas extraordinárias; a mulher
que é assediada no local de trabalho; a mulher
que é levada a tribunal por abortar; a mulher dos
números escabrosos que, todos os anos, dão
conta da violência doméstica como uma terrível
e viva realidade; a mulher sem tempo para se envolver
na vida pública e política do seu país...
É esta mulher - que tantas vezes é também
a mulher "Maria", "Telenovelas", "Máxima"
e "Cosmopolitan" - a mulher que chora e engorda
e tem ciúmes e fantasias de toda a espécie
- que nos mostra que hábitos e comportamentos,
infelizmente, não mudam por imposição
legal.
Hoje em dia, o feminismo é uma causa duvidosa,
lembrando apenas as mulheres cuja luta pela igualdade
se reveste de um mimetismo redutor, transformando-as num
outro homem. Esquece-se, no entanto, que feminismo é
ainda e sobretudo sinónimo de uma luta pela igualdade
de direitos e oportunidades, tentando apagar a ideia da
mulher como ser inferior que a história e, em grande
parte, a tradição cristã instituíram.
As vitórias das mulheres portuguesas circunscrevem-se
quase todas ao pós-25 de Abril de 1974 e essa proximidade
ajuda-nos a compreender que três décadas
são muito pouco para incorporar tantas mudanças.
Escassos anos antes, em 67, entrava em vigor um Código
Civil que determinava que cabia ao marido chefiar a família.
Até 1969 não era permitido à mulher
sair do país sem autorização do pai
ou do esposo. Só em 1975 volta a ser permitido
o divórcio que uma Concordata entre o Estado Novo
e a Santa Fé tinha proibido a partir de 1940 aos
casamentos católicos. Apenas em 76 é abolido
o direito dado ao marido de abrir a correspondência
da esposa - prenúncio do desaparecimento, em 78,
da figura do "chefe de família".
Mas terá mesmo desaparecido? Não é
ele o co-protagonista dessas estatísticas que nos
falam de violência doméstica? Não
é com ele que está casada a "sopeira"
- essa "mulher-Maria" que trabalha dentro e
fora de casa - que chora, engorda e fantasia com os heróis
das telenovelas e da literatura de cordel - que não
questiona a sua posição perante a santíssima
trilogia marido-filhos-lar? Não são eles
os pais do "rapazinho-Action Man" e da "menina-Barbie"
- do menino que se diverte com os jogos de computador
enquanto a menina ajuda a mãe na lida da casa -
dos meninos que já têm acesso há muitos
anos a uma escola mista, mas ainda não sabem bem
o que é isso de educação sexual e
porque é que ao menino é desde cedo incentivado
o uso do preservativo mas à menina ainda é
tabu falar da pílula na adolescência?
Apesar de já não se queimarem soutiens,
há ainda um longo caminho a percorrer para desfazer
o efeito que séculos e séculos de associação
da mulher ao "sexo fraco" e ao "segundo
sexo" tornaram quase epidérmico. Um caminho
delineado por trilhos sinuosos que perpetuam "lugares"
e, com eles, infindas disparidades entre a situação
real e a ideal.
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