Catarina Moura

O "lugar" da mulher


"Qual é, então, o lugar da mulher?" Éramos vários, homens e mulheres, em torno de uma mesa, puxando assuntos ao som pouco ambiente e mesclado de jazz de um dos bares mais agradáveis da Covilhã. As várias mulheres com que nos havíamos cruzado na rua, e que também ali eram presença dominante, trouxeram à conversa o Dia Internacional da Mulher, celebrado a 8 de Março - que este ano calhou à sexta, fazendo antever uma noitada mais liberta às centenas de mulheres que aguardavam nos bares a hora do striptease masculino, com que as discotecas locais celebram a data. Falavam os homens, a esse propósito e com certa inconveniência, de uma "libertação das sopeiras", que neste dia abandonam os maridos em casa e vão beber, dançar e curtir a efémera e questionável liberdade - muitas não saindo sem antes ter alimentado a família, prevenindo assim a confusão já adivinhada nas "suas" cozinhas, território ainda tão pouco familiar para tantos homens.
"Qual é, então, o lugar da mulher?" Creio que na altura ainda respondi qualquer coisa, mas intimamente concluí que, enquanto esta pergunta continuar a ser formulada, enquanto se considerar a existência de um espaço feminino, fará sentido existir um Dia Internacional da Mulher - por muito que ele tantas vezes nos pareça mais uma forma de calar as "sopeiras" e as colocar no seu "lugar".
A condição feminina foi, é e será sempre - sobretudo - uma questão de mentalidades. Claro que a conquista de um estatuto jurídico foi crucial para o estabelecimento de direitos fundamentais à definição da identidade e dignidade da mulher enquanto ser humano e cidadã. Mas a identificação do indivíduo com as leis é demorada, muitas vezes não chega a acontecer - o que se sente com particular acuidade numa situação cuja convivência histórica inscreveu na mente e na alma como "normal". Claro que o que era normal há um século não é hoje - e também por isso muitas mulheres sentem que já não faz sentido existir um Dia Internacional da Mulher. Mas esta mulher portuguesa do início do século XX é não só a maioria instruída que invadiu universidades e mercado de trabalho mas também a mulher cujo sexo, à revelia da lei, continua a determinar um salário inferior ao do colega de trabalho (homem) que com ela executa as mesmas funções, pelo mesmo período de tempo; a mulher que, a nível europeu, menos ajuda tem na divisão das tarefas domésticas; a mulher que não é promovida porque o facto de ter uma família à sua responsabilidade não a torna "disponível" para trabalhar horas extraordinárias; a mulher que é assediada no local de trabalho; a mulher que é levada a tribunal por abortar; a mulher dos números escabrosos que, todos os anos, dão conta da violência doméstica como uma terrível e viva realidade; a mulher sem tempo para se envolver na vida pública e política do seu país... É esta mulher - que tantas vezes é também a mulher "Maria", "Telenovelas", "Máxima" e "Cosmopolitan" - a mulher que chora e engorda e tem ciúmes e fantasias de toda a espécie - que nos mostra que hábitos e comportamentos, infelizmente, não mudam por imposição legal.
Hoje em dia, o feminismo é uma causa duvidosa, lembrando apenas as mulheres cuja luta pela igualdade se reveste de um mimetismo redutor, transformando-as num outro homem. Esquece-se, no entanto, que feminismo é ainda e sobretudo sinónimo de uma luta pela igualdade de direitos e oportunidades, tentando apagar a ideia da mulher como ser inferior que a história e, em grande parte, a tradição cristã instituíram.
As vitórias das mulheres portuguesas circunscrevem-se quase todas ao pós-25 de Abril de 1974 e essa proximidade ajuda-nos a compreender que três décadas são muito pouco para incorporar tantas mudanças. Escassos anos antes, em 67, entrava em vigor um Código Civil que determinava que cabia ao marido chefiar a família. Até 1969 não era permitido à mulher sair do país sem autorização do pai ou do esposo. Só em 1975 volta a ser permitido o divórcio que uma Concordata entre o Estado Novo e a Santa Fé tinha proibido a partir de 1940 aos casamentos católicos. Apenas em 76 é abolido o direito dado ao marido de abrir a correspondência da esposa - prenúncio do desaparecimento, em 78, da figura do "chefe de família". Mas terá mesmo desaparecido? Não é ele o co-protagonista dessas estatísticas que nos falam de violência doméstica? Não é com ele que está casada a "sopeira" - essa "mulher-Maria" que trabalha dentro e fora de casa - que chora, engorda e fantasia com os heróis das telenovelas e da literatura de cordel - que não questiona a sua posição perante a santíssima trilogia marido-filhos-lar? Não são eles os pais do "rapazinho-Action Man" e da "menina-Barbie" - do menino que se diverte com os jogos de computador enquanto a menina ajuda a mãe na lida da casa - dos meninos que já têm acesso há muitos anos a uma escola mista, mas ainda não sabem bem o que é isso de educação sexual e porque é que ao menino é desde cedo incentivado o uso do preservativo mas à menina ainda é tabu falar da pílula na adolescência?
Apesar de já não se queimarem soutiens, há ainda um longo caminho a percorrer para desfazer o efeito que séculos e séculos de associação da mulher ao "sexo fraco" e ao "segundo sexo" tornaram quase epidérmico. Um caminho delineado por trilhos sinuosos que perpetuam "lugares" e, com eles, infindas disparidades entre a situação real e a ideal.