Né Ladeiras
fala "Da Minha Voz"
"Na música tudo é
possível"
Numa tarde solarenga
encontrámos uma mulher com música na voz.
Conhecedora dos cantares tradicionais de Norte a Sul do
País, Né Ladeiras aprecia especialmente
o ritmo da Beira Baixa. De Trás os Montes herdou
uma força da terra, mas foi o Paul que elegeu,
há sete meses, para viver, compor e cantar.
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Por Ana Maria
Fonseca e Mariana Morais
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Urbi@Orbi- Começou
a cantar aos seis anos. Cresceu num ambiente familiar
ligado à música?
Né Ladeiras-
Lembrando-me da infância, onde havia sempre música,
ou nos gira discos, o meu pai a tocar viola, a minha mãe
a cantar, o meu avô, que também tocava muito
bem, de certeza que isso me influenciou, mas também
acho que já nasci com este dom.
U@O- Porque é que
entrou para a brigada Victor Jara?
NL- Foi uma ideia que surgiu
num café em Coimbra. Tinha 13 anos. Estávamos
a tocar e achámos que devíamos formar
um grupo. Tocávamos essencialmente música
latino americana, e todos tínhamos um grande
respeito pelo Victor Jara. Para nós simbolizava
o poder da mensagem de uma música, de alcançar
pessoas e transmitir-lhes coisas importantes. Tendo
em conta as circunstâncias da sua morte, no Chile
de Pinochet, decidimos que ficaria o nome Victor Jara.
Depois participámos com o Movimento das Forças
Armadas (MFA) nas campanhas de dinamização
cultural. Foi aí que tomámos contacto
com a música tradicional portuguesa. Começámos
a incluir no repertório, não só
musicas chilenas e da América latina em geral,
mas também cantares portugueses.
U@O-Lembrando essa altura, o que
é que lhe vem à memória?
NL- Sentíamos que fazíamos
parte da História. Tínhamos uma alma e
um ideal que era muito maior do que alguma coisa que
pudéssemos ter sentido até então.
Era uma época de sonhos e de luta, de querer
conhecer, saber muitas coisas, porque nós não
sabíamos nada. Na altura, para quem é
adolescente, estar a viver essa época conturbada
da revolução, podermos concretizar e experienciar
isso nas nossas vidas, no nosso dia a dia, foi extremamente
importante.
Fomos para o interior do País e deparámo-nos
com sítios que nem calculávamos que existiam.
Pessoas muito generosas e num estado de pobreza tremendo.
Nós, como estudantes, íamos dar aquilo
que de melhor tínhamos e sabíamos. Ajudávamos
as pessoas a ler, a serem mais esclarecidas, dizendo
que havia outros caminhos, que a época das trevas
tinha acabado. Em contrapartida, tínhamos aquilo
de melhor que as pessoas nos podiam dar: a sua cultura,
que era também nossa, só que nós,
não tínhamos acesso a ela porque o regime
não admitia.
O regime inventou uma coisa que eram as ranchetas. Um
grupo de pessoas, com saias rodadas, tocavam uns acordeões,
e era o vira. Mas nunca iam à raiz. Porque a
raiz é muito mais sábia, muito mais poderosa.
Fiquei particularmente impressionava com as polifonias
da Beira Alta, com os cantares alentejanos.
Foi um mergulho total na cultura portuguesa.
U@O- Em relação
a essas terras mais pequenas, as pessoas tinham consciência
da revolução ou estavam à parte
do que se estava a passar no País?
NL- Dependia dos sítios.
O Alentejo, por exemplo, era mais politizado. Em termos
de comunidade social, as pessoas funcionavam de outra
maneira, eram mais conscientes. embora, sabendo que
havia um preço muito grande a pagar devido à
repressão.
No norte, havia um problema de comunicação
muito grande, porque se tratava de populações
muito mais pequenas. Havia também os caciques.
Cruzámo-nos muitas vezes com eles, que nos ameaçavam
das mais variadas formas. O poder da igreja era também
muito forte. Foi aí que eu comecei a rever a
minha posição em relação
à Igreja. Achava que não era possível
os padres estarem do lado dos ricos e dos mais poderosos,
dando a ideia que havia castigos impressionantes, para
além dos reais, que eram a prisão, as
perseguições, castigos para além
da morte, ou seja, quando atingissem o paraíso
e o purgatório, iam ser julgados. Isso fez-me
muita confusão, porque parecia que estávamos
ainda na Idade Média.
Essas pessoas tinham dificuldade em aceitar uma abertura,
uma nova situação. Houve muitas que aderiram,
outras, muito lentamente, foram aderindo e outras simplesmente
não conseguiram porque, culturalmente, já
não fazia parte do seu horizonte.
Enfim foi um período de medição
de forças entre aquilo que era novo e aquilo
que já estava velho, muito velho e caduco.
"Na Beira Baixa, o ritmo
sente-se por todo o lado"
U@O-Esse período em que
percorreu Portugal e conheceu os cantares tradicionais
dos povos, influenciou a sua carreira musical?
NL- Sim. Quando eu conheci
todas essas mulheres e homens que cantavam, daquela
forma que eu desconhecia e aquelas melodias com influencias
árabes e judaicas, parecia-me uma tribo enorme,
revia-me nesse ambiente. Sempre gostei de coisas simples,
transparentes e verdadeiras.
Muitas vezes, nesses trabalhos de alfabetização
e dinamização, recolhíamos os temas
e depois tentávamos reproduzi-los, não
daquela maneira ortodoxa, mas já com uma ponta
de criatividade. Daí surgiram o Eito Fora, o
Tamborileiro e outros trabalhos da Brigada.
Nunca estive desligada da música tradicional,
embora o meu espírito quisesse experimentar coisas
novas. Sempre tive muita curiosidade porque acho que
na música, tudo é possível.
U@O-Podemos dizer então,
que músicas como as do Eito Fora foram um salto
qualitativo em relação às ranchetas?
NL- Sim, sem dúvida.
Porque as ranchetas existiam para divertir os turistas,
e para as pessoas não pensarem em nada. Uma pessoa
ao ler uma música do Eito Fora, que é
uma coisa tão simples, percebe que há
ali trabalho envolvido, um esforço. As pessoas
do povo explicam o seu quotidiano através da
música. Estou-me a lembrar de uma que se chama
"Alvisseras", com uma parte muito engraçada
que é "Ai acorde senhor prior, ai acorde,
não durma tanto, nós já vimos da
igreja, vamos para o espírito santo".
Isto é uma forma um bocado jocosa de criticar
os priores naquela altura. Ao povo exigia-se dinheiro
para a igreja, os pecados tinham de ser redimidos com
não sei quantas orações e os padres
pouco mais faziam.
U@O-É também um
pouco trazer a público, de alguma forma, a cultura
oral, uma vez que foram coisas passadas de geração
em geração?
NL- Sim, e muita coisa se
perdeu. Este trabalho começou com o Michael Jacometti,
o Lopes Graça, e o padre Mourinho. Um padre de
Miranda do Douro, diferente dos outros, que dedicou
toda a sua vida ao entrelaçar dele, que era o
representante da igreja, com as populações.
Foi ele que recuperou o Mirandês.
Infelizmente, muita coisa se perdeu. Muitos informadores
morreram. Mas o trabalho que está feito já
é valioso. Temos um património cultural.
Acho que a música é o campo que tem sido
menos apoiado. As pessoas
cantam e tocam porque gostam, por carolice e por amor
à camisola. Há pessoas no nosso país
que deviam ser subsidiadas pelo trabalho que fazem,
e não têm estatuto sequer.
Espero que um dia todo este trabalho seja recompensado.
O Michael Jacometi foi uma pessoa muito maltratada,
mesmo depois do 25 de Abril. Nunca quiseram saber das
centenas de gravações que ele tinha. Foi
uma pessoa que fez muito por nós.
O Michael Jacometti é muito lembrado pelas pessoas
mais velhas. Ainda se fala daquele "senhor de cabelos
brancos e barbas que vinha de burro, às vezes
a neve era tanta, o burro caía e ele continuava
a pé". Há um carinho muito grande
porque ele era uma pessoa muito amistosa e afável.
U@O-Houve alguma região
em especial cuja música a marcasse?
NL- Há um triângulo
que acho especialmente interessante: Trás os
Montes, Beira Alta e Beira Baixa. A Beira Alta pelas
polifonias que não se cantam em mais nenhuma
parte do mundo. Às vezes parece que não
são vozes humanas, parece que vêm não
sei de onde. Trás os Montes porque tem uma forte
influência árabe e judaica nos seus cantares
e claro, pela sonoridade da gaita mirandesa que é
deliciosa. Depois, a Beira Baixa porque é um
local de ritmo muito intenso. O ritmo da Beira Baixa
sente-se por todo o lado. Basta dizer que há
os adufes, os bombos, e aqueles cantares que parecem
vir do rio Jordão.
Vestir a música com roupas
nunca antes talhadas
U@O-Mais tarde integra a "Banda
do Casaco". Foi uma pedrada no charco?
NL- Foi, mas acima de tudo
era uma grande escola de música. Passaram por
lá quase todos os músicos que hoje estão
no nosso panorama musical com algum protagonismo. A
Banda do Casaco, para além de ter um núcleo
meio louco, tinham ideias muito avançadas para
a época.
Havia sempre a preocupação de vestir as
músicas com roupas que até aí nunca
tinham sido talhadas.
Acho que foi um grupo que marcou uma época e
não houve mais ninguém a dar continuidade
a esse trabalho. Foram tempos fantásticos, onde
aprendi muito.
Depois, em 82, tinha umas músicas feitas por
mim, e conheci o Miguel Esteves Cardoso que gostava
muito do meu trabalho. Aí partimos para uma aventura
que era o "Alhur".
U@O-Como é que foi essa
aventura?
NL- Foi uma coisa muito experimental
que tinha clara influência da música tradicional,
mas feita por mim. É nesse trabalho que abordo,
pela primeira vez, o outro lado da vida. Era o que eu
achava que precisava para me preencher, não só
em termos de matéria, mas também de alma
e de espírito. Na altura fui tida como uma alienígena,
mas não me importei nada. Tinha de falar nesse
mundo à parte, exactamente o título do
disco, "Alhur": em outro lugar.
Depois fiz um segundo disco a solo que não foi
do meu agrado, o "Sonho Azul". Infelizmente
parece ser o mais conhecido. Até gosto das músicas,
não gostei foi do processo. Comecei a gravar
esse disco no Mosteiro dos Jerónimos, mas depois
houve uma reviravolta. A editora achava que eu devia
ser mais pop, e que devia ser uma espécie de
Rita Lee portuguesa. Mas eu dizia, "eu não
sou isso, eu sou a Né Ladeiras". Acabei
por fazer o álbum com produção
de Pedro Ayres, mas já não gostava daquilo
porque não era o que tinha em mente.
U@O-É
por isso que acontece o desencantamento temporário
com a música?
NL- Não foi com a música,
mas com a indústria. É uma coisa muito
complicada. Ainda hoje é, e está pior.
Conseguem fazer das pessoas que são talentos
e que à partida têm muito para dar, descartáveis.
Não culpo quem embarca nisso porque são
pessoas inexperientes. Culpo é quem já
tem experiência e quer fazer dinheiro fácil
com uma forma de arte como esta. Não digo que
a música não sirva para entretenimento.
Claro que sim, mas que seja com qualidade. Não
é preciso fazer música a metro, que no
dia seguinte já está esquecida.
U@O-Como foi esta fase de
transição antes de regressar à
música?
NL- Foi quando decidi dedicar-me
à família.
Nessa altura comecei a trabalhar na rádio, em
Coimbra. Era uma forma de estar a trabalhar com música
dando música aos outros. Comecei numa rubrica
sobre as mulheres na música. Abordei todas as
áreas, do jazz, à pop, ao rock, à
música popular, andava sempre a investigar.
Fiz depois algumas participações das quais
guardo gratas recordações, por exemplo
no ultimo disco do Zeca Afonso. Ele dizia que era o
testamento dele e chamou as pessoas que queria que representassem
cada fase da sua vida. Aquela mente era brilhante.
U@O-Regressou à música
com a "Corsária"?
NL- Sim, apareceu a
possibilidade de fazer um trabalho sobre uma actriz,
que sempre viveu fora da máquina devoradora de
Holywood: Greta Garbo. Eu tinha estado na Suécia
uns anos antes e conheci alguns locais onde ela viveu,
em Estocolmo. Era uma mulher muito misteriosa. Assumiu
uma série de coisas que na altura eram difíceis,
e isolou-se quando achou que não tinha mais nada
para dar. Vi os filmes todos dela e despertaram-me curiosidade.
Daí nasceu a "Corsária", que
passou um bocado ao lado porque a editora foi à
falência, pouco depois do disco estar editado.