Carta
aberta aos alunos
Caro(a)s aluno(a)s da Universidade
da Beira Interior :
Como docente da UBI, recebo regularmente cartas da AAUBI
sobre os problemas escolares da nossa Universidade. Não
posso também deixar de recordar alguns dos artigos
sobre a nossa Universidade que surgiram na imprensa regional
no final do verão passado. Quero com este texto
responder a alguns pontos focados nessas cartas e nesses
artigos. Quero também enumerar alguns problemas
que, na minha opinião, afectam o rendimento escolar
na nossa Universidade. Permitam-me começar com
a seguinte citação, retirada da última
carta por mim recebida da AAUBI:
"É
necessário que em todos os regimes haja o mínimo
conceito de democracia, saber ouvir opiniões contrárias
às nossas, ter a capacidade de fazer uma auto-crítica,
e discutir propostas em prol de objectivos comuns".
Espero que os alunos saibam receber esta carta com a mesma
benevolência e sabedoria com que os docentes recebem
estas cartas da AAUBI e os artigos publicados na imprensa
regional.
Este texto reflecte necessariamente
a minha experiência como docente do Departamento
de Informática. Outros departamentos e unidades
científico-pedagógicas da UBI terão
realidades quiçá diferentes que podem invalidar
algumas das ideias contidas neste documento. As opiniões
aqui expressas, se bem que partilhadas por outros docentes,
são pessoais não reflectindo necessariamente
qualquer posição oficial do Departamento
de Informática ou de qualquer outro grupo de docentes.
Excesso
de provas de avaliação
Actualmente, na generalidade das disciplinas, os alunos
têm a possibilidade de participar em três
provas de avaliação: frequência, exame
e exame de recurso. Tal número de provas é
excessivo, em nada contribuindo para o sucesso escolar.
Permitam-me explicar o porquê.
1. Segundo
o calendário oficial, as frequências devem
ser realizadas no decorrer da última semana
de aulas. Assumindo que a generalidade dos alunos tem
cinco disciplinas por semestre, isto traduz-se por uma
prova de avaliação por dia! A Física
ensina-nos que um corpo não pode ocupar dois lugares
ao mesmo tempo. Logo, se o aluno está a realizar
uma prova, não está certamente a participar
nas aulas das restantes disciplinas. Mesmo que se tente
marcar as frequências para um horário coincidente
com as aulas das respectivas disciplinas, quantos alunos
estão dispostos a ir às aulas em dia de
prova, em semana de frequências?
2. Um mínimo
de uma semana deveria separar a última aula da
primeira prova de avaliação. Por dois motivos.
Em primeiro lugar, toda a matéria leccionada deve
poder ser avaliada. Em segundo lugar, os alunos necessitam
de um tempo mínimo para digerir a última
matéria leccionada e se prepararem convenientemente.
3. O excesso
de provas três por disciplina leva
a que na prática as provas se sucedam a um ritmo
quase diário. Não faltam casos de alunos
com duas provas marcadas para a mesma data (normalmente
de anos distintos).
4. Tendo como
referência o presente ano lectivo, temos vinte e
oito semanas de aulas e dez a onze semanas de avaliação.
Na prática, o número de semanas de aulas
é inferior (devido a actividades académicas
como a Recepção ao Caloiro, a Benção
das Pastas e os Dias da UBI) e o número de semanas
de avaliação é superior (pois os
alunos tentam marcar frequências fora da semana
para tal destinada, a fim de descongestionarem a época
de avaliações). Ou seja, passamos em
avaliações metade do tempo que é
dedicado às aulas.
Temos dois
meses sem aulas entre os dois semestres! Eliminar as frequências
do processo de avaliação significaria reduzir
para dois terços o número de provas, permitindo
uma melhor distribuição destas pelo período
de avaliação. Quem está preparado
para fazer uma frequência, está preparado
para fazer um exame (que se realiza sempre em data posterior
à frequência!).
Teóricas
versus Práticas
A separação da matéria de uma disciplina
(e, consequentemente, das suas aulas) entre teórica
e prática é frequentemente perversa, transmitindo
aos alunos uma ideia profundamente errada sobre os objectivos
de uma formação universitária (vou
esquecer aqui o híbrido conhecido como aula teórico-prática,
cuja definição no guia do aluno é
um momento de raro humor num documento de leitura aborrecida).
Uma consequência
desta distinção é o elevado absentismo
às aulas teóricas, que os alunos procuram
justificar como dispensáveis para as suas ambições
no mercado de trabalho (isto quando a justificação
não passa pela hora a que geralmente estas aulas
decorrem). Trata-se de uma visão redutora. As aulas
teóricas não visam simplesmente transmitir
aos alunos que existe uma justificação,
passível de demonstração matemática
ou prova científica, de um qualquer resultado ou
procedimento aplicado nas aulas práticas. Tal como
as aulas práticas não têm como fim
último ensinar a aplicar receitas.
Uma formação
universitária implica adquirir os conhecimentos,
os métodos de trabalho, a capacidade crítica
que permita enfrentar os novos problemas que esperam os
licenciados de amanhã. Não visa ensinar
soluções mas sim ensinar a construir soluções.
Criar riqueza e melhorar a produtividade consegue-se inovando,
aplicando os nossos conhecimentos de forma creativa. Não
se consegue aplicando automatismos para problemas tipificados.
Se existisse um receituário infalível para
o sucesso, o primeiro amor seria para a vida, os cordões
dos sapatos permaneceriam atados e a pasta ficaria
sempre al dente.
Ausência
de precedências
Citando uma vez mais a carta da AAUBI:
"(...)
apontar as causas, explicar os porquês, de uma determinada
cadeira ter 200 alunos inscritos, que frequentam as aulas
na primeira semana e na segunda semana ver esse número
reduzido para uma décima parte (...)."
Talvez porque muitos alunos inscrevem-se a um número
excessivo de disciplinas, sem fazerem primeiro as disciplinas
que lhe dão precedência? É que a atitude
demagoga de retirar as precedências da maior parte
dos currículos não traduz o súbito
desaparecimento das razões de ordem científica
que justificavam a sua existência. Haverá
porventura alguns casos em que as precedências em
tempo existentes não teriam justificação
científica. Trata-se contudo de casos pontuais.
O resultado
prático da ausência de precedências
é que um número significativo de alunos
não compreende a matéria que está
a ser leccionada pois não têm um mínimo
de conhecimentos básicos para tal. Sucedem-se os
comentários tipo "o prof é muito exigente",
"ninguém percebe o que ele diz", "a
cadeira é só para génios" ou
o sempre favorito "para que é que isto serve".
Nas provas de avaliação os alunos não
compreendem as perguntas, entregam provas sem terem a
mínima ideia da classificação que
poderão vir a ter, sofrem de stress pré-
e pós-prova onde as palavras como sorte, velinhas
e santos parecem ter parte preponderante nos resultados.
Tudo isto
traduz-se numa forma de pressão sobre o professor
para amenizar conteúdos, para olhar para o lado
quando encontra erros crassos em provas de avaliação,
para contemporizar com a passividade dos alunos nas aulas
práticas.
Absentismo
às aulas
Um número crescente de alunos não comparece
às aulas ou fá-lo de modo irregular. O absentismo,
antes típico das aulas teóricas, atinge
cada vez mais as aulas práticas. Convenhamos que
ser bom ou mau professor, bom ou mau pedagogo, assíduo
ou absentista, camarada ou distante, tem um impacto muito
pequeno, se é que existente, sobre estes alunos.
A presença irregular nas aulas invalida o esforço
do docente de leccionar a matéria numa sequência
coerente em que novo conhecimento se constrói sobre
os alicerces do conhecimento anterior.
Comentários
do tipo "eu só quero tirar um 10" denunciam
a mediocridade como objectivo e uma postura de corda-bamba
que geralmente dá maus resultados. Em época
de exames, todas as semanas sou interrogado no meu gabinete
sobre questões de avaliação por alunos
que desconhecem que não sou professor da disciplina
que os aflige. Outros sabem "como é o professor"
mas desconhecem o seu nome. As perguntas normalmente incidem
sobre critérios de avaliação que
foram comunicados na aula de apresentação
e disponibilizados nos Serviços de Reprodução
e/ou Associação Académica, quando
não na Web.
Cadeiras
críticas e alunos fantasmas
Há um ditado que diz que há as pequenas
mentiras, as grandes mentiras e as estatísticas.
No caso das taxas de reprovação, estas podem
ser calculadas de várias formas (lista não
exaustiva):
- percentagem sobre o total
de alunos inscritos;
- percentagem sobre o total
de alunos que se submeteram ao processo de avaliação;
- percentagem de alunos que,
tendo se submetido ao processo de avaliação,
frequentaram regularmente as aulas;
- percentagem de alunos que,
tendo se submetido ao processo de avaliação
e frequentado regularmente as aulas, não têm
em atraso as disciplinas que dão precedência
(de facto, não formal) à disciplina em
causa.
Conforme a
história que queiramos contar, assim devemos escolher
a nossa forma de cálculo. É necessário
dizer mais?
Tão
merecedor de preocupação como as taxas de
reprovação são os alunos fantasmas.
Falo dos alunos que, estando inscritos numa disciplina,
nunca comparecem a qualquer prova de avaliação.
No caso da última disciplina por mim leccionada,
cerca de metade dos alunos eram alunos fantasmas. Muitos
desses alunos não comparecem também a uma
única aula. Um padrão comum a muitas outras
disciplinas. Curioso como esta questão é
frequentemente esquecida pelos alunos nas suas críticas
ao estado do ensino na nossa Universidade.
Capacidade
de expressão oral e escrita em Português
Quando confrontados com o Português sofrível
que utilizam em relatórios e provas de avaliação
muitos alunos respondem dizendo "isto não
é uma cadeira de Português, é uma
cadeira de Informática" ou "o professor
não pode descontar por causa de erros de Português".
Nada mais errado. Se um aluno não é capaz
de se exprimir de forma clara e correcta, como é
que vai provar ao professor que domina a matéria
que está a ser avaliada? Não estou a falar
da falta de um acento numa palavra. Ou da troca de um
"ç" por "ss". Estou a referir-me
a frases incompletas, pontuações incomprensíveis,
falta de concordâncias, ignorância da diferença
entre "o" e "um", vocabulário
pobre. Respostas confusas denunciam ideias confusas. Ideias
confusas recebem más cotações. Más
cotações resultam em reprovações.
O docente classifica aquilo que o aluno escreve, não
os eventuais conhecimentos que poderiam estar no pensamento
do aluno quando este escreveu a sua resposta.
Equívocos
(também conhecidos por mal-entendidos)
A última carta distribuída pela AAUBI contém
alguns equívocos que gostaria de esclarecer:
1. "No
caso dos critérios de avaliação,
é nossa opinião que estes devem ser discutidos
e definidos com os alunos, sendo estes critérios
imutáveis salvo se for apresentado documento que
justifique essa mesma alteração."
Escolha problemática
de palavras. O regente de cada disciplina tem o
dever de comunicar e esclarecer quais os critérios
de avaliação. Não existe aqui subjacente
uma questão de democracia. Existe, isso sim, uma
questão de autoridade científica, que é
do professor e não dos alunos. Concordo, tal como
todos os colegas com quem trabalho e já trabalhei,
que o docente não tem o direito, salva caso de
força maior, de alterar esses critérios
no decorrer do semestre.
2. "A
existência de um momento de avaliação
(frequência, trabalhos, etc...) antes dos exames
é essencial, uma vez que possibilita ao aluno mais
uma oportunidade de alcançar o sucesso à
disciplina (...)."
Mais uma oportunidade?
Ser bem sucedido numa disciplina é uma questão
de preparação, de estudo. Não é
uma questão de tentativas. A escolha pelo aluno
de qual a prova a realizar exame ou exame de recurso
para cada disciplina deve, ser ditada pelo escalonamento
que melhor se adapta ao seu plano de estudos.
3. "(...)
daí que na nossa opinião se possa viabilizar
uma flexibilização do processo, tendendo-se,
consequentemente, para a redução das notas
mínimas e a não penalização
relativamente aos alunos pela sua não presenças
às aulas"
Os alunos
auto-penalizam-se ao faltarem às aulas.
Não é dever do professor repetir matéria,
sumariar numa aula prática a matéria leccionada
nas aulas teóricas ou tentar de qualquer outra
forma compensar os alunos por estes faltarem às
aulas. Nos casos em que a ausência numa aula é
consequência de uma sobreposição de
horários de disciplinas (que nunca ocorre com disciplinas
do mesmo ano...) ou de um caso de força maior,
existem horários de atendimento (que os alunos
muito raramente, e geralmente apenas em véspera
de provas, utilizam).
As notas mínimas
não são comuns nas disciplinas leccionadas
no meu departamento. Queria apenas dizer que uma nota
mínima deveria ser sempre uma consequência
natural de um processo de avaliação contínua,
não devendo existir quando a avaliação
é feita apenas com frequências e exames.
Alguns
factos esquecidos
1. Todos os professores já foram alunos de licenciatura.
Mais, foram alunos de sucesso. Formaram-se com classificações
excelentes. Após a licenciatura realizaram mestrados
e doutoramentos. Formaram-se, na generalidade dos casos,
em condições materiais (bibliotecas, equipamento
informático, condições económicas,
etc) piores do que aquelas que existem actualmente. Deduz-se
que terão algumas ideias e noções
sobre como triunfar numa licenciatura.
2. Sucesso
não é um direito. É um objectivo.
Um objectivo que requer trabalho, esforço, sacrifício.
3. Atitudes
de vitimização não ajudam. Os alunos
não são umas pobres vítimas do sistema
educativo. São parte do sistema educativo. Consequentemente,
com direitos e deveres. Escrevendo-se tanto sobre direitos,
permitam-me recordar alguns deveres. Ir às aulas.
Participar nas aulas. Submeterem-se às provas de
avaliação. Comportarem-se de forma honesta
durante as provas. Serem educados. Serem asseados: muitos
alunos, a começar por muitos dos fumadores, fazem
dos corredores e outros espaços públicos
da nossa Universidade a sua pocilga particular. Existem
cinzeiros. Existem caixotes de lixo que, permitam-me esclarecer,
têm uma parte para ser utilizada como cinzeiro e
outra para papéis. A parte para papéis tem
um letreiro que diz "Papéis". Confesso
que tenho fracas esperanças de ensinar estes alunos
a utilizarem produtivamente um computador quando constato
a sua dificuldade em utilizar uma caixa muito mais simples
com apenas duas entradas.
Paulo
Moura
Assistente, Dep. de Informática
Universidade da Beira Interior
5 de Março de 2002
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