Por Ana Maria Fonseca e Mariana Morais








Simin Rostami, depois de passar pelo Irão, pela América e por Inglaterra, sente-se cada vez mais beirã

Urbi@Orbi- Quais foram as primeiras impressões que teve da Covilhã?

Simin Rostami- De início, como não conhecia a língua não me sentia muito bem. Durante um ano estive muito isolada, não falava com ninguém. Tinha o meu filho mais novo sempre doente e passava muitas noites acordada. Foi nessa altura que comecei a aprender português, sozinha, numa tentativa de vencer o isolamento.
Estava habituada a uma cidade grande onde a vida corria de maneira muito diferente da Covilhã. Era outro espaço, outro ritmo. Tinha concluído o curso de "fashion and design" e preparava-me para entrar no mundo da moda. A vinda para a Covilhã interrompeu esse projecto. Passei de profissional de moda para doméstica.
Mas como os meus filhos se integraram muito bem na sociedade portuguesa, consegui superar esta situação.

U@O- Disse-nos que aprendeu português sozinha. como é que foi a aprendizagem de uma língua tão diferente da sua?

S R- Como eu já sabia bem inglês, por ter vivido na Inglaterra e nos Estados Unidos, foi mais fácil para mim começar a entender a língua portuguesa.
Com a ajuda de dicionários e gramáticas, lá fui aprendendo, sobretudo porque tinha muita vontade de perceber o que se passava à minha volta. Como sou uma pessoa muito comunicativa, sentia necessidade de conhecer a língua para entender melhor as pessoas que me rodeavam. Foram longos meses de esforço e paciência. passei muito tempo em frente ao espelho para conseguir dizer palavras como "ourivesaria" ou "especificamente". A minha aprendizagem foi mais difícil porque o meu marido também não sabia português.

U@O-Quer dizer que a Simin só veio para Portugal porque o seu marido foi convidado pela UBI?

S R-Sim, viemos porque o meu marido foi convidado para leccionar matemática.
O contrato era de um ano, e já passaram 14!

U@O-É o caso típico em que o marido progride na carreira e a mulher é forçada a abdicar da sua?

S R-Sim, se fosse ao contrário o meu marido não aguentava, voltávamos para casa.
Quando cheguei, tinha 33 anos, era bonita, vestia-me bem e estava cheia de esperança. Pensava poder realizar-me profissionalmente. Mas isso não aconteceu. Nunca encontrei nada, embora me fartasse de procurar. Há 14 anos que vejo os jornais, e para mim nunca aparece nada.

U@O-Nestes 14 anos, quais foram as tentativas que fez?

S R-Para além de estar inscrita no Instituto de Emprego e Formação Profissional, frequentei o curso de Português/Inglês no Instituto Politécnico da Guarda durante três anos, mas acabei por desistir porque não correspondia às minhas expectativas. Agora frequento o curso de Design e Moda Têxtil da ESE de Castelo Branco. E estou a gostar. Dou-me muito bem tanto com os colegas como com os professores.




Mulheres iranianas



O sonho americano e "God bless America"


Durante os três anos que viveu nos EUA, Simin conheceu o tipo de vida americano e os seus valores culturais. A propósito dos ataques de 11 de Setembro, lembra a visão que este povo tem sobre o que se passa fora das fronteiras do seu país.

U@O- O que pensa do povo americano?

SR- Um dos primeiros traços que eu destacaria é a visão estreita que eles possuem acerca do exterior. Aqui na Covilhã, por exemplo, uma cidade relativamente pequena, onde há pouca população, as pessoas têm uma visão muito mais vasta do mundo.
Eu não estou contra o povo americano. O que me parece é que eles vivem o seu conforto e o "sonho americano" de tal maneira que o põem acima de tudo, e pensam que o podem manter a qualquer preço.

U@O-Acha que essa ideia é criada pelo Governo, ou será inerente à cultura americana?

SR- Eu dou-lhe um exemplo. Há tempos, já depois do 11 de Setembro, vi na TV um programa sobre uma família americana que assistia pela televisão a imagens onde, em vários países árabes, se queimavam bandeiras americanas. Chocados perante o que viam, interrogavam-se "Mas porque é que eles fazem isto? Porque é que queimam a nossa bandeira? Nós até os temos ajudado tanto!"
Eu garanto-lhes que o povo americano não sabe nada do que se passa na vida política fora do seu país. Inclusivamente, nada sabem sobre a política externa dos Estados Unidos.
O que eles sabem é que têm de ter o seu conforto a qualquer preço.
Desconhecem, por exemplo, que algumas "amizades" americanas são de alto risco. Quando aconteceu o célebre "Irãogate", durante a guerra do Irão com o Iraque, os Estados Unidos oficialmente apoiavam o Irão, mas vendiam armas ao Iraque. Nessa altura, Sadam Husseim era o "amigo Sadam". Mais tarde zangaram-se e o "amigo Sadam" passou a ser "Satã".
O mesmo está a acontecer, agora, com Osama bin Laden.

Mulheres, revolução e liberdade

Quando fala do Irão, os olhos de Simin brilham. Apaixonada pelo seu país, gostaria de dar a conhecer aos portugueses a cultura iraniana.
No entanto, sente dificuldade em transmitir, através da escrita, os sentimentos que a riqueza da arte persa, antigo nome do Irão, lhe despertam. Desde o profeta Zaratustra, nascido por volta do século VI antes de Cristo, passando pelo médico e filósofo Avicena, que viveu no século X, e cuja máxima " não quero altura de vida, quero largura de vida", Simin adopta como lema, até ao realizador do "Sabor da Cereja" Abbas Rostami, a imensa riqueza da cultura persa é-nos transmitida por imagens, como se viajássemos num tapete voador, através do tempo.
Com quase três mil anos de existência, o Irão é ainda um mistério para a maior parte dos ocidentais. Mas foi de lá que saíram figuras do nosso imaginário colectivo. Quem não conhece a história de Simbad, o marinheiro, a lâmpada de Aladino, ou as artimanhas de Ali Babá e os quarenta ladrões?
Tal como Xérazade, Simin tem o condão de fazer parar o tempo enquanto nos fala do Irão dos nossos dias.

U@O-No Irão actual, existe igualdade de direitos entre homens e mulheres?

S R-Depois da revolução encabeçada pelo ayatollah Khomeyni avançámos em alguns campos mas retrocedemos noutros. As mulheres no início não tinham de usar véus, mas depois, pouco a pouco, começaram a usar novamente as túnicas em todos os eventos sociais.
As mulheres, hoje em dia, ainda são discriminadas. Isso é mais visível nos direitos sociais, na religião e, por exemplo, na escolha das profissões. Há profissões que continuam a ser quase exclusivamente masculinas. No desporto, por exemplo, há muita discriminação. As mulheres que optam pela prática desportiva são muito censuradas e treinam em locais separados dos homens.
Por outro lado, hoje em dia, 60 por cento dos jovens que entram na Universidade
são mulheres. Só na capital, Teerão, há 370 universidades e escolas superiores. A população do Irão é extremamente jovem. Num país com cerca de 70 milhões de habitantes, 45 milhões têm menos de 25 anos.

U@O-Como é que os jovens convivem com o apelo do ocidente, por um lado, e o peso da tradição por outro?

S R-Entre a população juvenil, os estudantes universitários têm representado um papel muito activo na recusa daquilo a que chamam uma "ocidentalização brutal", imposta aquando da "Renovação do Irão", no início da década de 70.

U@O-E em relação ao casamento, a rapariga tem liberdade para escolher o futuro marido?

S R-Depende essencialmente da tradição familiar. Há famílias em que os pais não deixam a rapariga escolher. A família tem uma grande importância na cultura iraniana. Os mais velhos são sempre muito respeitados.
É só no seio das festas familiares, por exemplo, que as mulheres podem dançar.

U@O-As mulheres não podem dançar em público?

S R-Não é permitido e, além disso, existem poucas discotecas. As que há são em locais escondidos e as mulheres que as frequentam não são bem vistas. Em casa, em festas de família, ouve-se música e dança-se, mas não em público.
As mulheres também não cantam como os homens. Só podem cantar em grupo, em coros. Não existem cantoras a solo.

U@O-E em relação ao cinema, sentem que há influência do ocidente?

S R-Após a revolução a nossa atitude foi deixar de imitar o cinema americano. Antes os filmes iranianos copiavam o estilo de Hollywood. Era disso que as pessoas mais gostavam. Agora, o pensamento, as ideias dos filmes são nossas, baseiam-se na nossa cultura. Há maior liberdade de criação.

U@O-Também há mulheres cineastas?

S R-Há uma realizadora chamada Samira Makmalbaf, autora do filme "O Quadro Preto", vencedor de vários prémios em festivais internacionais. Este filme foi proibido no Irão por criticar a falta de atenção do Governo iraniano à instrução das populações fronteiriças.

 

O lugar do Irão no mundo




Durante nove séculos, de 651 a 1501, a Pérsia esteve debaixo do domínio árabe. Esse domínio levou à destruição de grande parte da identidade do povo persa.
A religião fundada por Zaratustra, o masdeísmo, foi completamente eliminada e a Pérsia foi forçada a converter-se ao Islão.
Toda a herança cultural foi quase totalmente destruída. Apenas alguns exemplares de livros foram salvos, por pessoas que os escondiam, enterrando-os. Durante este período, todas as obras foram traduzidas da língua persa para o árabe. Nem as obras de Avicena escaparam à massificação árabe.


Simin Rostami fala com saudade do Irão moderno e da antiga Pérsia

O árabe foi imposto como língua oficial mas, clandestinamente, a língua mãe passava de geração em geração.
Simin recorda este momento histórico do seu país com profunda mágoa e revolta.
Teve a sorte de nascer muitos séculos depois quando o iraniano já era de novo a língua oficial do seu país. Mais tarde Simin aprendeu outros idiomas e conheceu outros países e culturas.

U@O- Saiu do Irão há quantos anos e porquê?

SR- Saímos do Irão há 26 anos. Fomos estudar para os Estados Unidos e aí vivemos durante três anos.

U@O-E gostou de viver nos Estados Unidos?

SR- Gostei. O que me fascinou mais foi que, há 26 anos atrás, era já um país muito avançado tecnologicamente. Recordo que uma das coisas que me impressionava nesse tempo era a eficiência dos transportes públicos. Nunca me esqueço. De três em três minutos havia um autocarro que transportava os alunos directamente do campus universitário para a universidade.

U@O-Depois desses três anos, o que se seguiu?

SR- Quando se deu a revolução do ayatollah Khomeyni, regressámos ao Irão. Mais tarde saímos de novo, desta vez para a Inglaterra, onde ficámos cinco anos. Nessa altura, o meu marido foi convidado para ensinar Matemática na UBI durante um ano. Viemos em 1987 e passados 14 anos, ainda cá estamos.

U@O-Qual é o saldo desta já longa estadia na Covilhã?

SR- Globalmente, penso que é positivo. Estou muito satisfeita com o curso que frequento em Castelo Branco e cada vez mais integrada na Beira Interior. Sinto-me próxima de concretizar o sonho de mostrar a cultura do meu país aos portugueses.

A preparar um conto em língua portuguesa, esta iraniana já conhece a Beira Interior como a palma das suas mãos. Desde o gosto do café à beleza da neve da Serra da Estrela, gosta particularmente das ruas antigas da Covilhã e de ver "as velhotas a apanhar sol nas ombreiras das portas".