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A minha bisavó, o Bob
Dylan e o Urbi
[ Vou falar-vos da minha
bisavó. Quando terminar talvez percebam porquê.
]
A minha bisavó foi a primeira
pessoa que perdi. Na segunda-feira, 7 de Fevereiro, nascia
o Urbi @ Orbi - no sábado, 5 de Fevereiro, morria
a minha bisavó. Estava a preparar a primeira edição
do jornal quando a minha mãe telefona e dá
a notícia. Estava a preparar uma nova fase da minha
vida quando a minha mãe telefona e me fala de morte.
Teria hoje 100 anos, tal como o Urbi já tem 100
edições. Mas mesmo que estivesse viva, este
Urbi que todas as terças-feiras damos à
cidade e ao mundo passar-lhe-ía ao lado como aconteceu
com tantas outras coisas. Para a minha bisavó,
que se chamava Amélia e não fez 100 anos,
a história que interessava era a sua e a dos que
conhecia na pequena vila em que viveu, rodeada de um imenso
bosque de pinheiro manso, quase toda a sua vida. A minha
bisavó Amélia era uma senhora pequenina
que o tempo embrulhou em papel amachucado e amarelecido.
Tinha o cabelo comprido, que uma trança perfeita
escondia na nuca, e uns olhos escuros e redondos, cheios
de um brilho lúcido que só morreu com ela.
Cheios das muitas memórias que partilhava comigo
à soleira da porta nas tardes de verão que
passava ao seu lado. Tenho a infância cheia do cheiro
daquela casa. Verões de pinheiro e manjerico. Invernos
de café de cevada e pão de ló. Cheiros
a que regresso sem esforço.
Nasceu na monarquia e deixava a infância quando,
já sem rei, foi viver para a vila onde ficou para
sempre. Quando o mundo tremia sob a primeira Guerra Mundial,
a minha bisavó casava com um bisavô que nunca
conheci e ela nunca esqueceu, magoada pela partida prematura
de um grande amor. Se lhe falássemos na Segunda
Guerra encolheria os ombros. Dessa altura só sabe
que viu nascer, crescer e casar cinco de seis filhos.
O mais novo ficou até ao fim, para sempre o seu
frágil e adoentado bebé. Viveu para ele.
Só queria viver enquanto ele vivesse. E quando
ele partiu foi atrás dele, para continuar a protegê-lo.
A minha bisavó não soube nada das letras
do mundo. As contas fazia-as de cabeça, de acordo
com as necessidades da casa e das vidas que geria. Das
notícias só lhe interessavam as da família,
dos amigos e dos conhecidos. Os tempos mudaram, as saias
subiram, mas as dela ficaram sempre um palmo abaixo do
joelho. A uma geração que cantava "For
the times, they are a-changin" ela perguntaria "Bob
quê??" e continuaria calmamente a viver a sua
vida cheia dos dramas e das alegrias de uma mulher comum,
com a fragilidade e a força da mulher comum, mas
a meu ver com menos defeitos e mais qualidades humanas
que a mulher comum.
Da modernidade conheceu a luz eléctrica, a água
canalizada e, já depois dos 70, o frigorífico,
a cuja magia se rendeu apaixonadamente. Não quis
saber de cinema ou televisão. Diziam-lhe que haviam
de fazer um programa sobre ela quando fizesse 100 anos.
Sorria, doce, já sem dentes, e encolhia os ombros.
A televisão que ela nunca quis iria bater-lhe à
porta para depois, em cinco minutos, contar a história
de uma vida e revelar o fantástico segredo da longevidade
ao tentar saber o que comia e bebia a secular e enrugada
senhora quase surda. Depois saíam satisfeitos e
ela lá ficava, alheia a esse mundo imenso paralelo
ao seu.
A minha bisavó teria agora um século todo
dela, muito diferente do século dos outros. Não
viu um único computador. Nunca lhe falei da Internet.
Queria ter-lhe dito que trabalhava num jornal on-line.
Queria ter-lhe explicado o que é a World Wide Web.
Queria ter-lhe mostrado o meu mundo com a mesma ternura
com que ela me mostrou o dela. Queria ter ainda aqueles
olhos escuros e cheios de tempo a acariciar-me o rosto.
Queria que a mudança dos tempos não roubasse
do meu tempo as pessoas que amo. "The line it is
drawn | The curse it is cast | The slow one now | Will
later be fast | As the present now | Will later be past
| The order is | Rapidly fadin' | And the first one now
| Will later be last | For the times they are a-changin'
"
Parabéns Urbi @ Orbi.
Muda com os tempos sem deixares de ser fiel aos princípios
que te definem.
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