A lição de mecânica


Frederico Lopes



Jean-Pierre Jeunet, depois de se ter vergado ao rigor canónico da indústria de Hollywood com a fabricação do filme 4 do pacote Alien - O regresso, retorna à velha Europa e fica planando, desta feita muito convenientemente, sob os telhados de Paris. Jeunet, regressado, navega a todo o vapor, zumbindo, voa célere, nunca perdendo de vista a rota traçada por Hollywood, feito mosca.
Logo a partir do genérico e até ao happy end, Jeunet poisa no modelo industrial e explora, deliciado, os mecanismos da fábrica dos filmes. A paródia que nos propõe não questiona o modelo, agarra-se ao modelo. Jeunet brinca com o modelo e brinca com todo o prazer. Jeunet brinca feliz e faz feliz quem assim o vê brincar. É tudo muito lindo, muito atraente, muito engraçado. Quem não gostou da brincadeira foi Cannes que rejeitou liminarmente o desaforo de quem vai para Hollywood obrigando-se a brincar ao sério e regressa a França para fazer um filme em que diz, em jeito de lição, que um filme se faz como quem brinca, quem brinca à Hollywood. Uma ousadia que nem a "hollywood francesa" pode aceitar... (se Jeunet quer parodiar o cinema, então que vá lá para Hollywood parodiar o Allien quatro... Afinal Cannes está ou não está no polo oposto dos territórios do azevinho?!... Caramba, é preciso saber guardar as distâncias, nom de Dieu!).
Jeunet é um mecânico. Um bom mecânico por sinal (ainda que não seja reconhecido em toda a Europa, como acabamos de ver). Também por isso, o seu filme, comprometedor e de compromisso, aposta fortemente no mercado americano.
Mas vamos às coisas sérias.
O tempo é um dos elementos essenciais do cinema que alguns entendem poder e dever esculpir. Vejamos o que é o tempo para Jeunet? No filme Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, rigorosamente, o tempo é uma questão mecânica, melhor dizendo, o tempo é a própria mecânica do rigor. Numa fórmula simples e redutora, para Jeunet, tempo é igual a velocidade. Por mais que Jeunet insista em engaiolar o tempo na imagem repetida, cíclica, (crono)metrada do visor de um relógio Omega, captado por uma câmara de vídeo e reproduzida no ecrã de um aparelho de televisão, travestido em objecto de culto, o tempo é, neste filme, sinónimo de velocidade, qual cavalo louco correndo na volta à França. Ora, a velocidade abrevia o decurso do tempo, é inimiga da duração e a duração é a condição essencial para que as imagens possam ser. Já experimentaram pôr a cabeça de fora da janela do carro quando circulam a grande velocidade? Experimentem respirar enfrentando a deslocação do vento e vão ver como descobrem o mal-estar impresso pelo ritmo da montagem nestas imagens de bela aparência, que a velocidade sadicamente vai asfixiando. Em Amélie fica-se embasbacado com o ritmo frenético com que os planos se sucedem, num grande sufoco. Os acontecimentos organizam-se à nossa frente a uma velocidade fantástica, numa síntese brutal, numa correria louca que não nos deixa olhar a imagem. A imagem fica sem tempo para respirar.
Mas Jeunet sabe do ofício. Então porque escolheu imprimir ao seu filme um ritmo vertiginoso, obedecendo à nova palavra de ordem do modelo de produção americano: "cada vez mais depressa"? Jeunet procura criar uma impressão geral de felicidade, cujo efeito se traduz num sorriso fácil e divertido e Jeunet sabe que, para isso, em termos puramente técnicos, o que convém é utilizar planos de curta duração.

ORMI - Oficinas da Repetição Mecânica das Imagens.
O apartamento do velho senhor Raymond, o vidrinho, pretende ser o laboratório da imagem, tal como Jeunet a entende. Ali as mensagens são passadas no formato vídeo, repetidas da televisão. Ali, a pintura é apenas repetição, uma infindável repetição de Renoir. Não é um laboratório, é uma oficina. A segunda oficina é composta pelos múltiplos photomaton que acentuam a precaridade e a repetição das imagens, pois nisso reside, afinal, a essência do aparelho photomaton.
A repetição da imagem do visor do relógio nem funciona como o pedal de um travão: não consegue abrandar a marcha vertiginosa imposta por Jeunet através de um ritmo de montagem alucinante. É mais uma declaração, ou um ponto de vista do realizador, se quizerem. O relógio é a representação mais extremada do tempo, a tentativa de controlo mecânico do tempo. O tempo deixa de ser uma forma pura de intuição sensível. Com esta imagem, Jeunet reafirma a sua convição na mecânica da imagem velocidade, na aceleração mecânica do tempo. Acaba por dizer, afinal, que a média e a longa duração são já, para ele, uma natureza morta. Para além disso, a escolha de Jeunet não podia ser mais contraditória: atribui um destino contemplativo e de contemplação ao dispositivo televisual, como se isso alguma vez fosse possível, ao mesmo tempo que o seu filme é um repositório de toda a técnica das imagens publicitárias que asseguram a vitalidade económica do próprio dispositivo televisão. Neste filme, Jeunet faz da técnica das imagens publicitárias para televisão o seu altar. Na prática, Jeunet não parodia a televisão. Jeunet adora televisão e não usa relógio, usa cronómetro. Em Amélie é tudo estilizado, simples e encantador, pronto a consumir. Fast food visual. É tudo publicidade.

Segunda parte da lição: a mecânica do sexo e o amor mecanizado
Repetindo a receita de Delicatessen, em Amélie a relação sexual fica também em fora de campo sendo presentificada pelo som (com o recurso a todos os efeitos de amplificação), pelo movimento ritmado de objectos e pelo jogo de luz do acende-apaga das lâmpadas néon do bar. Um dejá-vu metafórico num carrossel de imagens publicitárias, mais trabalhadas e refinadas, de grande perfeição técnica, apelativas, sedutoras.
Ditadura da montagem é a escolha deliberada e consciente do realizador Jean-Pierre Jeunet para resolver a tensão entre forma e conteúdo. Uma linha de produção que assegura as mecânicas do tempo, do sexo e, finalmente, do amor. De facto, a cena final, o happy end na relação amorosa de Amélie Poulain e Nino Quincampoix, escapa à mecânica do sexo (Amélie até nem tinha achado grande piada às primeiras experiências sexuais, mecânicas por sinal) e Jeunet reserva-lhe um encantador refúgio na sua verdade, também ela mecânica - a velocidade. O destino reservou para a "corajosa" Amélie a alucinante experiência de deslizar a grande velocidade, sobre rodas, num regresso glorioso à velha VeloSolex que corre agora, com as novas tecnologias, à velocidade sideral das naves espaciais, pelas ruas de Paris, conduzida por um expert em conquistas, vídeos porno, fotógrafo de pegadas em cimento fresco, coleccionador de fragmentos de fotos à la minute. A felicidade suprema - La vie en rose!
Neste ballet mecânico proposto por Jeunet (é esta a sua lição de encantamento para a gente jovem e também para a que se diz jovem) a vida é uma forma alienígena. O realizador terá sido contaminado pelo Alien e virou máquina. Com Jeunet, o destino da espécie humana já foi. Já foi humano, agora é mecânico.
Não desejamos para Jeunet a fatalidade de um destino natural que logicamente o levaria a mais publicidade e belos vídeoclips. Fazemos votos para o rápido, definitivo e espantoso regresso de Jean-Pierre a Hollywood, onde o espera uma comédia ou um musical. Provavelmente uma comédia musical, ligeiramente carregada de humor negro (impõe-se uma guilhotina como adereço), um motion picture cuja acção deverá ter lugar exactamente em Hollywood, em 2789, precisamente.