BALEIA
Edmundo Cordeiro
UMA BALEIA NAS RUAS DE PARIS - inspirado na canção
"Moderne Baleine", dos Rita Mitsouko:
Ontem, na rua da Linha, uma rua perto
do rio Sena, encontrei uma baleia. A baleia estava numa
parede feita de ondas e de água salgada do mar
Espreguiçava-se
Penteava-se
Penteava
os seus cabelos que eram de erva fresca, fria, húmida
do orvalho, uns cabelos verdes raiados de vermelho cor
de sangue, ou cor de
morango!
É uma baleia moderna, uma baleia
que procura aprender cada vez mais, que procura estar
a par de tudo, saber tudo, actualizar-se
- Oh, não
sabem que esta baleia precisa de aprender! É uma
necessidade natural! É como beber água!
Ela precisa de aprender para poder viver melhor num mundo
demasiado moderno. Uma baleia também tem necessidade
de ser moderna. Não é só o mundo!
Não são só
Mas quando encontrei ontem a baleia,
na rua da Linha, ela disse-me que no dia anterior tinha
ido limar e afiar bem os seus dentes no dentista do mar
No dentista do mar?
O dentista - que é primo de
um velho marinheiro português, o Vasco da Gama,
vive numa ilha onde está muito bem instalado, com
todas as suas máquinas de cuidar das dentuças.
Lá foi ela, ao dentista.
Atravessou quase todo o Oceano Atlântico,
entre Lisboa e a América, passou ao lado das ilhas
dos Açores, e lá chegou ela à ilha
do dentista, que falava português, porque, como
agora sabemos, é primo do Vasco da Gama. Mas nadou
devagarinho. Sim! Porque uma baleia moderna não
tem pressas, uma baleia moderna não corre. Parece
mal! Devagarinho, pelo caminho, atirava jactos de água
e de vapor muito brilhante
E depois de ter os dentes arranjados
e os lábios pintados, lá foi ela outra vez
para as profundezas secretas do mar
As profundezas
secretas do mar, lá muito no fundo, onde nunca
ninguém foi
Um lugar que os deuses lhe deram
só a ela, para ela morar
E ontem encontrei-a na rua da Linha
quando eu andava tranquilo pelas ruas, depois de ter lido
um livro sobre como andar tranquilo nas ruas, um livro
moderno.
O céu estava iluminado de um
cor-de-rosa muito vivo. A baleia, habituada ao azul do
mar à superfície e ao azul muito escuro
e quase negro do fundo do mar, estava por isso muito admirada.
Ao longe, ela - ela e eu - via a Igreja do Sagrado Coração
iluminada de ouro - a Igreja fica num pequeno monte, o
monte que se chama Montmarte, que quer dizer, mais ou
menos, Monte dos Mártires. Porque antigamente houve
um santo que sofreu muito ali - um santo mártir,
e um mártir é uma pessoa ou um santo que
sofreu muito porque lhe fizeram mal sem razão nenhuma.
Mas hoje já não fazem ali mal aos santos.
Talvez porque hoje há menos santos do que antes.
Não sei. Não sei mesmo.
Contei isto à baleia. Eu sei
umas coisas, mas a baleia era muito simpática e
não me chamou sabichão, ela queria era saber
ainda mais, mais ainda, saber tudo, tudo. E queria subir
ao monte de Montmarte para ver a Igreja do Sagrado Coração,
queria vê-la mesmo à frente dos olhos. Ela
pensava que a Igreja era feita de ouro. Mas não
era, claro que não era, isso pôde ela ver
quando lá chegámos. Era a luz que a fazia
parecer assim. A luz das luzes da cidade.
Perguntou-me a baleia por que é
que o céu também não tinha uma cor
de ouro. Não tinha, disse-lhe eu, porque o céu
estava iluminado pela Lua e pelos reflexos, pelos raios
do pôr do Sol que atravessam as nuvens. Por isso
estava o céu cor-de-rosa.
A baleia podia avistar quase toda a cidade de Paris do
alto do Sagrado Coração. Abriu a sua grande
boca, admirada, contente, feliz. (Foi nessa altura que
eu pude ver os seus dentes impecavelmente tratados
Oh, baleia muito moderna! Bela!)
Lá ao longe ela via a Torre
Eiffel, muito grande, também iluminada a ouro.
Que é aquilo? Perguntou ela. Aquilo
Aquilo
é uma torre enorme toda feita de ferro, disse eu.
E porquê? Perguntou ela outra vez. Fiquei um bocado
atrapalhado porque não sabia a razão daquela
torre, não sabia por que é que a tinham
feito. Porquê? Para quê? Uma Igreja a gente
já sabe para que é que serve e por que é
que foi feita (normalmente para lembrar um santo, ou Nossa
Senhora, ou assim), agora aquela torre que não
era nenhuma Igreja e parece um termómetro para
medir a temperatura do céu - foi feita para quê?
Olha, não sei
se calhar já soube,
acho que sim, que já soube, mas esqueci-me.
A baleia quis ir comigo até
à Torre Eiffel, queria ver, queria subir lá
acima, queria
Ai que baleia!
Lá fomos e lá subimos.
Quando chegámos lá acima,
mesmo no alto - aquilo é muito alto - a baleia
abriu outra vez a boca de admiração, só
que a abriu muito mais agora. Depois disse: -Ó
seu malandro, então não sabes por que é
que esta torre foi feita? Não tens vergonha de
não saber isso? (Confesso que até estava
muito à vontade e não tinha vergonha por
isso.) Eu vou dizer-te, continuou a baleia: esta torre
foi feita para mostrar às pessoas que as grandes
cidades são uma espécie de mar - e que as
profundezas secretas deste mar
as profundezas secretas
deste mar
são os corações das
pessoas. Às vezes chamam a isso alma, sabes?
- Oh, querida baleia, disse eu, é
mesmo isso, é mesmo isso
Depois descemos e fomos embora. E ela
disse, quando mergulhava no rio Sena para ir até
ao mar: - amanhã quero andar de metro contigo!
Até amanhã!
Pumba! Grande mergulho!
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