MONTAGEM
Edmundo Cordeiro
Jean-Luc Godard, excertos do seu discurso por ocasião
da atribuição do prémio Adorno em
Frankfurt am Main a 17 de Setembro de 1995, publicado
em TRAFIC, nº 18, com o título "A propos
de cinéma e d'histoire", pp.28-32.
"Creio no homem na medida
em que faz obras. Os homens devem ser respeitados porque
fazem obras (
). Deste ponto de vista, não
sou um humanista. (
) Em primeiro lugar as obras,
foi o que nos ensinou Langlois, e depois os homens. E
se respeitarem aquelas, respeitam estes. Não o
contrário. (
) Aconteceu qualquer coisa, uma
imagem, uma imagem que era apenas um movimento - não
uma imagem como se vê na televisão, que mostra
só a chegada ou a partida e nunca o que vai ou
regressa de uma a outra -, e esse movimento, esse acto,
essa imagem, dizia-nos qualquer coisa que não quisemos
escutar. Preferiu-se falar por cima - como nesses lamentáveis
comentários desportivos. Deste ponto de vista,
se quiserem, a obra, para mim, é a criança.
E o homem é o adulto, são os pais. E com
o cinema havia algo de novo quanto a isto: a criança
mostrava aos pais aquilo que eles eram e, ao mesmo tempo,
falava do que ela era. E os pais não quiseram saber
disso para nada. Tiveram medo. (
) tornava-se perigoso,
não contar histórias, mas ver a história.
Mas para a ver é preciso expô-la e fazer
o que Lévi-Strauss, Einstein ou Copérnico
fizeram. Se dissermos que Copérnico, por volta
de 1540, trouxe essa ideia de que o Sol deixou de girar
à volta da Terra, e depois se dissermos que mais
ou menos por essa altura Vésale publicou DE CORPORIS
HUMANIS FABRICA, temos Copérncio num livro e no
outro Vésale. Num livro, o universo e o infinitamente
grande. E no outro o interior do corpo humano, infinitamente
pequeno. E depois, quatrocentos anos mais tarde, temos
François Jacob, o biólogo, que escreve:
no mesmo ano, Copérnico e Vésale
Pois
bem, desta forma, Jacob não faz biologia, mas cinema.
E a história está aí. É aproximação.
É montagem. Da mesma maneira, quando Cocteau diz:
se Rimbaud não tivesse morrido antes, ele teria
morrido no mesmo ano que o Marechal Pétain. Temos
assim o retrato do jovem Rimbaud e o do velho Marechal
de França em 1948 e vamos de um a outro por intermédio
do olhar, e temos aí uma história, temos
história, a do vosso terrível Hegel, se
quiserem, ou a do vosso gentil Benjamin. Não uma
história falada, mas vista, e quando Marx diz "gaguejou",
se a sua maneira de dizer tem peso, é porque é
já uma imagem - e porque Niépce e Nadar
tinham feito e mostrado o seus primeiros clichés.
(
) Utilizou-se muito a palavra montagem. E diz-se
hoje em dia: a montagem em Welles, em Eisenstein, ou então
a ausência de montagem em Rossellini. Ah! Os imbecis!,
diria Bernanos. O cinema nunca encontrou a montagem, a
Tobis e a RCA não lhe deram tempo para isso, e
qualquer coisa se perdeu no caminho, a sua linguagem (
)
Há um combate entre os olhos e a língua.
Os olhos são povos. Os governos são a língua.
Quando o governo fala do que vê e age em consequência,
é bom, porque é a linguagem do médico.
Ele diz: é uma sinusite, e faz um acto de montagem,
de aproximação. Com o cinema, sobretudo,
era uma nova maneira - que não se tinha visto nunca
- de chamar as coisas pelo próprio nome, uma maneira
de ver os pequenos e os grandes acontecimentos, maneira
que se tornou imediatamente popular e que reclamava também
imediatamente o mundo inteiro. Numa palavra, o cinema
era feito para pensar, e portanto para curar as doenças.
Para mim tudo isso se clarificou lentamente quando me
apercebi que tinha sido acompanhado desde o meu nascimento
por essa segunda história de que falava Braudel,
aquela que vos acompanha com passos lentos. E apercebi-me,
depois de muitos filmes, eu e outros, que não tínhamos
mostrado os campos de concentração. Em sentido
lato, tínhamos falado disso, mas não tínhamos
mostrado nada. (
) Pareceu-me que com o cinema liberto,
por assim dizer, a primeira coisa a mostrar devia ter
sido os campos, no mesmo sentido em que se mostrou no
início o andar do homem com a espingarda cronofotográfica
de Marey, coisas assim. Mas não se quis ver. Preferiu-se
falar, dizer - e nunca isso. E o mesmo se ramificou, Vietnam,
Argélia - não acabou ainda -, Biafra, Afeganistão,
Palestina. (
) O cinema olhou tão pouco o
mundo quanto não olhou o mundo que o olhava. E
quando a televisão chegou, colocou-se muito depressa
no lugar do mundo, também ela não o olhou,
quer dizer, não o guardou duas vezes [jogo de palavras
entre "regardé" e "gardé":
"re-gardé", guardar duas vezes]. E quando
se olha ["regarde"] a televisão, não
vemos que a televisão vos olha ["regarde"],
quer dizer, vos guarda ["garde"] duas vezes.
E a imprensa não melhorou nada nisto, partilhando
o poder como pode. Portanto, quando Ingrid Bergman esconde
a chave na sua mão, já não vemos
que essa chave nos olha. E isso aconteceu num momento
em que não se quis ver o mundo no estado em que
os campos o tinham posto. O cinema, ou melhor, o cinematógrafo,
desapareceu nesse momento. Desapareceu porque tinha anunciado
os campos. Da mesma maneira que Viena e a sua música
tinham anunciado a Primeira Guerra Mundial, o cinematógrafo
tinha anunciado a Segunda. Mas Charlie Chaplin, conhecido
todavia como ninguém, melhor que Napoleão
e Gandhi, Chaplin, em quem todos acreditavam, pois bem,
quando ele fez O DITADOR ninguém acreditou nele.
Renoir, quando descreve a grande ilusão e a regra
do jogo, ninguém lhe presta a menor atenção.
(
)"
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