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Uma barata na parede
"... curta e brutal, possuía a horrível
simplicidade dos bichos elementares. Já era demais
lê-la: jurei não pronunciá-la, mesmo
em voz baixa. Não queria que aquela barata negra
agarrada à parede me saltasse para a boca e se
metamorfoseasse, no fundo da garganta (...). Se eu fizesse
de conta que não a notara, talvez ela voltasse
para um buraco na parede."
Jean-Paul Sartre
in Les Mots
Nasce devagarinho (um risquinho...),
o olho no professor (uma letra...), o rosto a ferver (uma
palavra...), a deliciosa excitação do proibido
(um insulto...), da clandestinidade (um desabafo para o
companheiro do lado, desafiando-o a partilhar a aventura...).
É uma tentação. Aquela mesa tão
lisa, tão limpa, tão imaculada; e aquela aula
tão chata, aquela matéria tão "seca",
ditada tão monocordicamente... O cenário convida,
as circunstâncias justificam - porque não?
Cresce. Salta das mesas da escola para as portas das casas
de banho, para muros e paredes que, de tão vazios,
parecem estar mesmo a pedi-las. Invade ruas, terras, países,
com um arrojo impune que se transforma em vírus sem
antídoto nos grandes centros, onde as pessoas são
massas e o vazio é grande demais para ficar contido
no peito.
Morre com a idade - essa "coisa" que vem de lado
nenhum para domesticar todas as vozes. Mas lá no
fundo (nalguns mais fundo do que noutros) algo sobrevive
- linhas soltas, traços confusos que, num qualquer
instante de inadvertência, podem saltar cá
para fora, indomáveis outra vez.
Há palavras que ganham corpo
em lugares escuros, sombrios e malcheirosos. Palavras
libertas de todos os constrangimentos em lugares onde
a livre expressão se furta por completo a qualquer
tipo de controlo. Palavras libertas até mesmo de
sentido. Confusas. Gritos silenciosos feitos matéria.
Subversão. Transgressão. Insulto. Lixo visual.
Inocência. Palavras apenas. Necessárias?
Haverão palavras necessárias? Serão
"apenas palavras"?
Não ostentam bandeiras nem pretensões de
mudar a sociedade. Mas, à sua maneira, quem sabe
não contribuem para tornar essa sociedade mais
transparente? Porque nós somos esses muros pintados,
essas mesas escritas, essas portas cravadas a canivete,
essas casas de banho públicas sujas de tinta e
de todos. Sim, nós somos esses nomes, esses rabiscos,
esses insultos, esses erros ortográficos, esses
alguém "love" alguém ...
"A cultura não salva ninguém,
não justifica. Mas é um produto do homem:
o homem projecta-se nela; só esse espelho crítico
lhe devolve a própria imagem." (J.P. Sartre)
E eis que o espelho nos devolve a decadente imagem de
uma sociedade com vontade de falar e sem nada para dizer.
De um espaço onde já ninguém se entende
porque falam/escrevem todos ao mesmo tempo, atabalhoadamente,
uns em cima dos outros, sem respeito por uma individualidade
que é, afinal, uma noção cada vez
mais difusa... Será a anti-cultura uma solução
neste mundo ambíguo e de ideias diluídas
onde as pessoas já não conseguem ter sonhos
que um "crédito por telefone - disponível
em 24 horas" não possa comprar?
Reais, presentes, difíceis de
ignorar, situados algures na ténue fronteira entre
o racional e o irracional, estes escritos são a
mais pública, banal e indomesticável das
formas de expressão. Um culto, quase, adorado na
sombra por milhões de adeptos que, possivelmente,
teriam muita dificuldade em explicar o porquê dessas
palavras gratuitamente lançadas onde ninguém
as quer.
Não sei explicar o fenómeno.
Talvez seja um modo de saciar a eterna fome da afirmação
e do dizer. Talvez não seja nada. São "só"
palavras com prazo de validade. Duram o tempo que durar
uma porta, o espaço entre uma pintura e outra,
nunca se sabe. Vivem entre o eminente perigo do desaparecimento
e o da ilegibilidade resultante de um acumular infinito
de palavras, desenhos, riscos, moralidade barata, filosofia
de cordel... Mas há mais espaço. Há
sempre um outro espaço. E não adianta fingir
que não vemos a barata na parede. Ela está
lá, enorme, prontinha para nos saltar em cima.
Cabe-nos decidir de que forma se vai metamorfosear dentro
de nós.
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