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Um nó
Confesso. Estou siderada. Consternada. Doente mesmo.
Os talibãs da minha rua não sabem de cor
o corão nem usam burka. Não passam o dia
de cócoras a abanarem-se como autistas. Comem bons
bifes ao almoço. Gostam de cinema. Foram vacinados.
Tomam antibióticos. São todos modernaços.
Objecta-lhes a consciência e são contra a
pena de morte. Defendem os direitos dos animais, dos ratos,
das bactérias e leveduras. Têm tabus alimentares:
não comem favas nem pisam feijões. Já
se sabe: eu também. Por isso nestes últimos
dias na minha cabeça deu-se um nó.
É que os talibãs da minha rua ficaram intimamente
felizes com o massacre de 11 de Setembro. Acharam que
os americanos estavam mesmo a pedi-las. Ateus empedernidos,
até passaram a simpatizar um bocadinho com os estudantes
de teologia, e a achar altamente exagerados os rumores
que contra eles correm. Manobras do imperialismo americano,
como é evidente.
Os talibãs da minha rua viram os aviões
explodir, pessoas a saltarem das janelas do world trade
center, as torres a desmoroarem-se sobre o pessoal dos
socorros, e sentiram-se intimamente felizes e justificados.
Sabem fazer contas: doze mil pais que choram os seus filhos.
Seis mil viúvos e viúvas. Doze mil órfãos.
Mas para eles nada disso conta. Os talibãs da minha
rua intuem que isto não está bem, e portanto
tentam às vezes disfarçar - mas nem sempre
conseguem. A alegria íntima que os consome brota-lhes
da fundura da alma como um riacho borbulhante.
Pensava que os talibãs da minha rua não
gostavam do imperialismo americano e do seu capital porque
queriam uma coisa melhor. Enganei-me. A sua dialéctica
é puramente negativa e não teleológica.
Associar-se-iam com quem quer que fosse na sua jihad contra...
contra o quê? Nós, claro. A sério.
Se me contassem, há uns meses, eu não acreditaria.
Mas culpa é minha. Devia ter desconfiado. Os sinais
estavam todos lá. E permanecem. Ainda há
dias li algures a veemente condenação dos
atentados, que saiu desta forma: "O terrorismo fundamentalista
é injustificável"! Como se assassinar
a tiro, pelas costas, septuagenários heróis
da luta anti-franquista o fosse.
Peirce dizia que "ser moral" é uma questão
de hábito e convicção - de boas maneiras,
digamos - e tinha muito mais razão do que se pensa.
Essa gente cultivou negros hábitos durante muitos
anos. Agora não podem fazer nada. Essa satisfação
que sentem, não conseguem evitá-la. Não
se muda de hábito como quem muda de camisa. É
por isso que vai ser mais fácil perdoar aos talibãs
da montanha que aos da minha rua.
Também choro entes queridos.
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