Jorge Bacelar

Depois dos ventos semeados


Ficamos todos chocados com as imagens dos aviões e das torres do WTC e dos destroços. Porquê? Pela quantidade? Porque na América é tudo em grande? Todos os dias vemos imagens similares, em escala reduzida é certo, de instalações palestinianas bombardeadas pelos israelitas, uns funerais de árabes aqui e ali. Vimos o Chile e a América Latina a esguichar sangue sob a bota do tio Sam. E África. Clinton, sem argumentos que se vissem, mandou bombardear 'alvos estratégicos' no Sudão, que se viria a saber constituírem metade das reservas de medicamentos do país. Como resultado, terão provocado a morte a mais gente do que as vítimas de New York e Pentágono. Mas como não deu na televisão e eram todos pretos, nem sequer aconteceu. Timor. Afeganistão. Vimos a Jugoslávia a apanhar petardos da nato durante meses a fio, e os tontos dos jugoslavos ainda por cima a insultarem-nos, aqueles ingratos. Mas é tudo em nome da democracia e do modo de vida do mundo livre. Vemos crianças e mulheres e homens todos os dias a morrer no Iraque, de fome, de doenças. Gostam do Saddam, não gostam? Então...

É. Nada disso nos incomoda grande coisa. Mas como foi na América, o caso muda de figura.
Cinismo à parte, também fiquei chocado. Pelas vidas estupidamente desperdiçadas. Pela falta de sentido disto tudo. Mas também fiquei (e continuo) apreensivo: este é um maná caído do céu, um argumento de peso para os militarões exigirem mais poder; mais restrições aos movimentos de pessoas; controle da informação; censura. Pode ser um pouco paranóide, isto tudo, mas algo me diz que o big brother, agora, é que vai começar a sério.

Nas próximas semanas vamos seguramente ser massacrados com propaganda a celebrar os mártires da América; vamos ouvir teses laudatórias ao incremento de medidas de segurança, centralização do poder, controle da informação, escalada de acções de retaliação (económica e militar), tudo isso numa moldura de nobres e virtuosos objectivos - e nunca, mas nunca como abominações totalitárias. À mínima hesitação, esfregam-nos na cara a imagem do avião a embater na torre, dos corpos a cair, dos destroços. Tudo será feito para honrar a memória desses inocentes. Em especial, matando outros inocentes, que nós designaremos como danos colaterais... Tudo em nome da nossa liberdade e da nossa democracia.

As pessoas normais sentir-se-ão solidárias com as vítimas e com as suas famílias, e terão um difuso sentimento de esperança num mundo em que estes sentimentos de ódio e vingança deixem de ter lugar. Mas o meu receio não vem dos desejos das pessoas normais: vem mais da sua passividade, da abdicação dos seus direitos individuais numa procuração assinada em branco aos seus lideres, que entretanto vão afivelando os cinturões de granadas e atirando com as liberdades públicas para o incinerador.

É ainda com a poeira da derrocada do WTC no ar que escrevo isto. Deveremos ter em conta que o terrorismo é bárbaro e insano. Mas o capitalismo, o american way of life é, em grande medida, a causa desse mesmo terrorismo. O desespero e a miséria, que a nossa arrogância e o nosso modo de vida provocaram. Não podemos abandonar a dissidência, mas antes pelo contrário, deveremos aprofundar a reflexão e a crítica a todas as formas de injustiça, com todos os meios pacíficos ao nosso dispor. Até à desobediência civil.