António Fidalgo
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Camões e o cânon
A recente controvérsia
sobre o estudo, ou melhor a falta dele, de Camões
no ensino secundário, é a ponta visível
de uma profunda controvérsia sobre as referências
culturais. Tal controvérsia grassa há mais
de uma dúzia de anos nos Estados Unidos, alimentada
fortemente pela variedade étnica, religiosa, antropológica
e social de uma população com proveniências
tão diferentes como judeus, negros, latinos e asiáticos.
Se durante muito tempo a cultura anglo-saxónica
foi o ponto de encontro destas culturas, a base do caldo
do
melting-pot, hoje em dia é posta em causa pelas
comunidades que não se revêem nos valores
espirituais e culturais em que assentou a redacção
da Declaração da Independência.
Em Portugal o problema não advém, pelo menos
por enquanto, da diversidade étnica, religiosa
ou linguística da população, mas
das transformações pelas quais a sociedade
portuguesa passou ao longo das últimas décadas.
O ciclo do império encerrou-se, Portugal passou
de pátria estendida pelos quatro cantos do mundo
a um pequeno e pobre país da Europa Comunitária.
O país de características rurais pura e
simplesmente desapareceu com a emigração
brutal das décadas de sessenta e setenta e pouco
tem a ver com o país que agora recebe milhares
de imigrantes de países do leste europeu. É
óbvio que as referências culturais se alteraram
e se alteram. A ideia de "heróis do mar, nobre
povo, nação valente e imortal" torna-se
mais difusa com o passar dos anos, tal como o pathos associado
mais difícil de experimentar e entender.
É óbvio que tais alterações
teriam de chegar aos marcos sacrossantos da literatura.
Na América, Shakespeare e outros membros ilustres
do cânon ocidental são marginalizados em
favor de estudos culturais heteróclitos. Em Portugal
havia de chegar a vez de Camões de Gil Vicente.
Bem-vindos à batalha do cânon cultural.
Penso que o estudo de Camões na escola é
fundamental e deve continuar a ser obrigatório.
E isto porque faz parte do património identitário
do que somos como povo, país e nação.
Há que manter, cuidar e cultivar o nosso cânon
literário e cultural. Dito isto muito claramente,
há que não esquecer todavia que a cultura
das novas gerações não é mais
centrada na literatura como acontecia há dezenas
de anos. Com as inovações tecnológicas
da reprodutibilidade de som e imagem, a cultura das novas
gerações é marcada sobretudo pela
música e pelo cinema. Sobre o tema leia-se o último
ensaio de George Steiner no livro "No Castelo do
Barba Azul" de 1971! E vejam-se os orçamentos
públicos de hoje, do governo e das autarquias,
na área da cultura. A menor parcela é a
destinada aos livros, as grandes verbas vão para
o audiovisual e para a música.
Estude-se Camões sim, defenda-se o cânon,
mas não se esqueça que "todo o mundo
é composto de mudança, tomando sempre novas
qualidades e, afora este mudar-se cada dia, faz de mor
espanto que não se muda já como soía."
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