Pedro Homero
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O buraco
mais fundo
A cada segundo que passa
nascem e morrem pessoas. Dê lá por onde der,
esta verdade inexorável não pode ser rebatida,
logo é desprovida de interesse. No entanto, e por
razões emocionais de proximidade, a morte ou o
nascimento de qualquer pessoa afecta sempre alguém,
negativa ou positivamente. O que é perfeitamente
natural, estranho seria se assim não fosse. Aos
portugueses afectou, com uma certa naturalidade, a morte
cruel de seis compatriotas no Brasil. Afinal de contas,
são do 'nosso' país, e ainda por cima foram
mortos num 'país irmão', a mando, presumivelmente,
de outro português amigo de um deles.
Este episódio passará provavelmente ao lado
de um belga, ou de uma australiana. Um tibetano estará
mais preocupado com a morte à espreita, vinda da
Polícia do Regime Opressivo da China e a sudanesa
olhará para o céu à espera da chuva
que acabe com os meses de seca, indiferente à sorte
destes seis companheiros de espécie.
Até aqui tudo normal. Seis pessoas mortas por meia
dúzia de patacos não é novidade,
todos os dias alguém mata alguém em troca
de um quilo de carne ou de dois sacos de arroz, é
atroz mas é a realidade que temos no planeta.
No entanto, muito mais atroz me parece um outro crime,
com vítimas e carrascos, pois então, mas
perfeitamente evitável e, de certa maneira, mais
vasto e aterrorizador que a morte de seis turistas.
Coloquemos a cobretura mediática, sobretudo a televisiva,
em perspectiva: que temos à nossa frente? O que
é que é isto? Como é que é
possível que as televisões portuguesas -
nem vou comentar a realidade mediática brasileira
- descam tão baixo, na senda de mais audiências
para terem mais anunciantes para terem mais dinheiro?
Se repararmos bem, é possível fazer a analogia
entre os dois crimes. Assim:
Luís Miguel Guerreiro > vontade
de ganhar mais dinheiro > roubo de compatriotas >
morte dos mesmos e Televisões Portuguesas >
vontade de ganhar mais dinheiro > desrespeito pelas
mais elementares regras de deontologia profissional e
regras de civismo > enxovalhamento de um assunto sensível
e dos intervenientes > julgamento popular com possíveis
linchamentos à vista
As televisões portuguesas, sobretudo
as privadas (mas a RTP1 não ficou muito atrás,
diga-se), desceram ainda mais a fasquia, no processo de
'desformação' dos seus espectadores.
As empresas privadas não dependem directamente
do nosso dinheiro, via impostos, e podem, portanto, fazer
o que querem, desde que legal. Até aí tudo
bem. O problema aqui coloca-se, creio, no papel (des)formador
que os media em geral, mas a televisão muito em
particular, têm, o que coloca uma série de
questões que não afectam, por exemplo, uma
loja de electrodomésticos.
As televisões bem podem alegar que a) estão
numa guerra entre si
e b) têm que dar ao público aquilo que ele
quer.
Em relação ao primeiro argumento, é
fácil de ver que as primeiras vítimas
são os próprios telespectadores, sendo a
seguir os intervenientes incautos da emissão (como
os familiares das vítimas ou do acusado). Essa
guerra pode ser uma chatice para os generais - as empresas
de media - mas é um verdadeiro inferno para os
soldados - as vítimas. Em relação
ao segundo argumento, creio que é absurdo quanto
baste. Tal argumentação impede que se veja
o fim da espiral descendente dos media, cada vez mais
'competente' no fornecimento dos espectáculos mais
degradantes nos espaços de informação.
Porque a meu ver o problema situa-se exactamente nos espaços
de informação. Nos programas de entretenimento
que façam o que quiserem. A questão coloca-se
antes nos programas de informação, única
fonte de notícias para a maior parte deste país
iletrado. As televisões têm um carácter
formador, por mais que não queiram esse fardo.
E como tal não podem simplesmente descer ao mínimo
denominador comum dos humanos, correndo o risco de nivelar,
ao limite, a informação pelos bandos de
lichadores e comissões de pureza racial.
Quem é o maior criminoso?
Um tipo incompetente e sem ética, que rouba e mata
um amigo e mais cinco pessoas, num plano fadado a falhar
redondamente, ou uns tipos que decidem que se vai a casa
dos pais do tipo anterior, expondo-os e lançando-os
à fúria da populaça?
Qual é o buraco mais fundo? A vala-comum da Praia
do Futuro ou a falta de ética das televisões
portuguesas?
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