CLANDESTINO


Edmundo Cordeiro

Passagem de DIALOGUES (de Gilles Deleuze e Claire Parnet, Flammarion, Paris, 1977, pp.56-58).

"Há muita gente que sonha ser traidora. Acreditam nisso, acreditam que são traidores. Porém não passam de pequenos batoteiros. O caso patético de Maurice Sachs, na literatura francesa. Qual o batoteiro que não se disse: ah finalmente, sou um verdadeiro traidor! Mas qual o traidor que à noite também não disse a si próprio: afinal de contas eu não passava de um batoteiro. É que trair, é difícil, é criar. É preciso com isso perder a identidade, o rosto. É preciso desaparecer, devir desconhecido.

O fim, a finalidade de escrever? Muito para além ainda de um devir-mulher, de um devir-preto, animal, etc., para além de um devir-minoritário, há a tarefa final de devir-imperceptível. Oh não, um escritor não pode desejar ser "conhecido", reconhecido. O imperceptível, característica comum da mais alta velocidade e da maior lentidão. Perder o rosto, saltar ou furar o muro, limá-lo muito pacientemente, escrever não tem outro fim. É o que Fitzgerald chamava verdadeira ruptura: a linha de fuga, não a viagem nos Mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (mesmo se se deve devir animal, devir preto ou mulher). Ser finalmente desconhecido, como muito pouca gente o é, é isso, trair. É muito difícil deixar de ser conhecido, mesmo da porteira, ou no bairro, o cantor sem nome, o ritornelo. No final de TERNA É A NOITE, o herói dissipa-se literalmente, geograficamente. O belo texto de Fitzgerald, THE CRACK UP, diz: "Eu sentia-me como os homens que via nos combois de subúrbio, em Great Neck, já lá vão quinze anos…" [Tradução portuguesa de ANÍBAL FERNANDES, um clandestino: F. Scott Fitzgerald, A FENDA ABERTA, Hiena Editora, Lisboa, 1986.] Há todo um sistema social que poderíamos chamar sistema muro branco - buraco negro. Estamos todos pregados no muro das significações dominantes, estamos sempre enterrados no buraco da nossa subjectividade, o buraco negro do nosso Eu que nos é o mais caro de tudo. Muro onde se inscrevem todas as determinações objectivas que nos fixam, nos encaixilham, nos identificam e nos fazem reconhecer; buraco onde nos alojamos, com a nossa consciência, os nossos sentimentos, as paixões, os nossos pequenos segredos demasiado conhecidos, o nosso desejo de os fazer conhecer. Ainda que o rosto seja um produto deste sistema, é uma produção social: grande rosto de faces brancas, com o buraco negro dos olhos. As nossas sociedades têm necessidade de produzir rosto. Cristo inventou o rosto. O problema de Miller (que já era o de Lawrence): como desfazer o rosto, libertanto em nós as escavadoras que traçam linhas de devir? Como passar o muro, evitando ressaltar, para trás, ou ser esmagados? Como sair do buraco negro, em vez de girar no fundo, que partículas fazer sair do buraco negro? Como quebrar mesmo o nosso amor para se ser finalmente capaz de amar? Como devir imperceptível? "Je ne regarde plus dans les yeux de la femme que je tiens dans mes bras, mais je les traverse à la nage, tête, bras et jambes en entier, et je vois que derrière les orbitres de ces yeux s'étend un monde inexploré, monde de choses futures, et de ce monde toute logique est absente… L'œil, libéré du soi, ne révèle ni n'illumine plus, il court le long de la ligne d'horizon, voyageur éternel et privé d'informations… J'ai brisé le mur que crée la naissance, et le tracé de mon voyage est courbe et fermé, sans rupture… Mon corps entier doit devenir rayon perpétuel de lumière toujours plus grande… Je scelle donc mes oreilles, mes yeux, mes lèvres. Avant de redevenir tout à fait homme, il est probable que j'existerai en tant que parc…" [Henry Miller, TROPIQUE DU CAPRICORNE, éd. du Chêne, p. 177.]

Ali onde já não temos segredos, já não temos nada a esconder. Somos nós que nos tornámos num segredo, somos nós que estamos escondidos, ainda que o que fazemos o façamos abertamente, à luz crua. […]"