Por Cristina Marques e Nélia Sousa


O grande objectivo da ACM é preparar estas crianças para a realidade, e não criar-lhes um mundo à parte.

Numa pequena sala do antigo Hospital Distrital da Covilhã cerca de 12 crianças fazem alguns desenhos e pinturas, sob o olhar atento da professora do 1º ciclo, Fátima Mendes e a auxiliar pedagógica, Lídia Andrade. Eternas crianças, pois "a idade biológica não corresponde à idade mental", explica Fátima Mendes.
Dinis Fonseca, de 17 anos tem dificuldades de aprendizagem. Há 3 anos ingressou na Associação Cristã da Mocidade (ACM). Filho de pais carenciados, viu a sua situação agravar-se quando o pai sofreu um acidente. A vida traçou-lhe um destino difícil, mas a sua força de vontade leva-o a superar todos os obstáculos. Apesar de todas as dificuldades, é ele quem leva o sustento à sua família demonstrando que, apesar das diferenças, não vive num mundo à parte.
Ao ingressar na ACM, Dinis foi submetido a um despiste vocacional e descobriu assim a sua aptidão para a jardinagem. Uma tendência que se deve ao facto dos pais serem agricultores e estarem em contacto permanente com a natureza. "O que mais gosto é de cortar relva com a máquina", refere entusiasmado o pequeno Dinis, que se encontra no pré-profissional desde os 16 anos.
Depois de passar a manhã na jardinagem, Dinis almoça na cantina da ACM, com o seu grupo de amigos.
À tarde as opções são variadas. Informática, Desporto, Educação Visual e Tecnológica são algumas das actividades que ocupam o Dinis e seus colegas ao longo da semana.
Quinta-feira é um dia muito especial para as crianças da ACM. Reúnem-se com professores e auxiliares para elaborarem o jornal de parede que se encontra exposto à entrada da Instituição. Todas as semanas têm de estar atentos ao que se passa à sua volta. A televisão é o meio mais utilizado para a recolha de notícias que lhes despertaram o interesse ao longo da semana.
O Dinis está a um ano de terminar o seu estágio profissional. Para Fátima Mendes, "a colocação no mercado de trabalho pode ser complicada, já que está na área da jardinagem", mas a força de vontade que demonstra é um factor que joga a seu favor.

Paralisias Cerebrais profundas

Trissomia 21 e Paralisia Cerebral são as doenças mentais que afectam as mais de 70 crianças oriundas, maioritariamente, da Covilhã, Fundão, Belmonte e Guarda.
Tratam-se de deficiências que surgem quase sempre à nascença, embora a Paralisia Cerebral possa vir a ser diagnosticada mais tarde.
Através de um acompanhamento especial, algumas crianças conseguem atingir um ponto de estagnação no evoluir da deficiência, embora também possa acontecer o inverso. O agravamento da doença "leva-os mesmo a adquirir uma força quase sobre-humana", adianta Fátima Mendes.
Os professores do ensino especial encontram inúmeros problemas para lidar com estas crianças. Mesmo em casos de deficiências semelhantes surgem reacções inesperadas.
A pequena Mara é o caso mais grave da valência. Mas apesar da Paralisia Cerebral profunda que a deixou quase cega, a Mara consegue vestir-se sozinha e até bater bolos. Fruto de um processo longo e persistente, Mara consegue realizar instintivamente certas tarefas: "Está de tal forma mecanizada, que consegue fazer coisas por si própria", explica Fátima Mendes.

"Têm namorados e dão beijinhos"

Ao fim da tarde regressam a casa. Para trás fica um dia preenchido pelas várias actividades que passam também pelas vivências directas com o mundo exterior.
O grande objectivo da ACM é prepará-los para a realidade, ao invés de lhes criar um mundo à parte. Para isso têm diversas actividades extra-curriculares, nomeadamente passeios, visitas de estudo e intercâmbio com outras escolas.
No contacto com o exterior, as crianças lidam directamente com o mundo real, onde aprendem a utilizar os transportes públicos e a atravessar nas passadeiras. "O melhor é alertá-los para o meio e torná-los autónomos", afirma Lídia Andrade.
Na maior parte dos casos a escolaridade fica para trás. As suas capacidades cognitivas permitem-lhes apenas fazer uma pequena leitura do nome e outras coisas simples.
Estes miúdos são, maioritariamente, carenciados, quer a nível económico, quer a nível afectivo, funcionando a Instituição como uma espécie de refúgio. Aqui superam essencialmente as carências afectivas. "Eles gostam de quem os trata bem", justifica José Maria Simões, professor e coordenador pedagógico.
O contacto permanente entre as crianças acaba por aproximá-las cada vez mais, ultrapassando as inúmeras diferenças. "As crianças até têm namorados e dão beijinhos", confidencia Lídia Andrade. É o caso do Ricardo, que depois de terminar o trabalho nas madeiras, espera ansiosamente pela Liliana, sua namorada.

Sociedade pouco receptiva

A procura de pessoas qualificadas pelo mercado de emprego leva a que muito do trabalho destas crianças deficientes seja pouco reconhecido. "A sociedade quer fazer dinheiro e como eles têm limitações. É muito difícil aceitá-los", lamenta Lídia Andrade.
Nélson é uma excepção à regra. Apesar da Paralisia Cerebral, este jovem é o exemplo de que uma deficiência não significa estagnação. Actualmente encontra-se a frequentar o curso de Informática, em Coimbra, que lhe permitirá ingressar numa empresa deste ramo.
Como a sociedade não está muito receptiva, nem todos têm as mesmas oportunidades. Por isso, a ACM sentiu a necessidade de criar instalações adequadas, de forma a integrar as crianças e proporcionar-lhes alguma independência. É o caso do Centro de Emprego Protegido (CEP) que tem como objectivo a promoção de estágios nas diversas áreas e a admissão em emprego protegido.
Neste estabelecimento são colocadas as crianças que, depois do despiste vocacional, se enquadram nas áreas de carpintaria, cestaria e têxteis. Devidamente acompanhadas, as crianças realizam as tarefas como um trabalhador comum e são igualmente remuneradas. Este Centro pretende ser uma forma de aproveitar as qualidades destas crianças, que ganham assim uma maior autonomia.
O ensino regular é outra das opções a que os pais recorrem frequentemente. Aí são também acompanhados por um professor do ensino especial, onde a prioridade é dada à escolarização.
Fátima Mendes, que conhece de perto as duas realidades refere: "No ensino regular as crianças não são devidamente preparadas para a vida prática".
As dificuldades são acrescidas, quer para o aluno que não se consegue integrar, quer para o professor, que não consegue responder simultaneamente às necessidades dos seus alunos e da criança com dificuldades de aprendizagem.





  Pais e professores: o apoio fundamental

Joaquim Manuel, funcionário na UBI, aprendeu durante anos a cuidar do filho João, deficiente profundo. Desde muito cedo, o João tornou-se uma criança diferente: não falava, não andava e só comunicava através das suas expressões faciais.
A tarefa era complicada para estes pais que não se conformavam com o facto de tratarem o João como um "coitadinho". "A maior luta foi sempre com a sociedade. Se saíamos para tomar café, o João acompanhava-nos", recorda Joaquim Manuel que nunca escondeu o filho em casa.
Esta criança exigia cuidados redobrados, que condicionavam a vida dos pais: "é muito complicado ter um filho nestas condições, só quem passa pelos problemas é que consegue compreender", explica Joaquim Manuel.
No entanto, nem todos os pais sabem lidar com o facto de terem um filho deficiente: "é muito difícil ter um filho que não nos deixa dormir, nem ir a lado nenhum durante toda a vida. Por isso, antes de os criticarmos, devemos colocar-nos no lugar deles", explica a professora Fátima Mendes.
Vinte e sete anos depois da sua fundação, a ACM continua a ser uma casa especial para meninos especiais.



 

Uma casa especial


A Associação Cristã da Mocidade da Beira Interior (ACM) nasceu em 1974, com o objectivo de responder aos anseios comunitários, que visavam criar um Centro de Educação Especial para a educação e recuperação de crianças e jovens portadores de deficiências.
O seu objectivo primordial passa pelo desenvolvimento de acções dirigidas aos mais carenciados e marginalizados.
As instalações da ACM funcionam, a título provisório, no antigo Hospital da Covilhã. Aqui as crianças desenvolvem um trabalho na área da escolarização e despiste vocacional.
Depois de uma triagem, as crianças são encaminhadas para o Centro de Emprego Protegido (CEP), na área onde têm maior aptidão.
Para as crianças mais carenciadas, a ACM construiu o Lar Residencial para Deficientes, que funciona à imagem de um lar de idosos, onde estão permanentemente.