TRAIDOR


Edmundo Cordeiro

Passagem de DIALOGUES (de Gilles Deleuze e Claire Parnet, Flammarion, Paris, 1977, pp.53-54).

"O Antigo Testamento não é uma epopeia nem uma tragédia, é o primeiro romance, e é assim que os ingleses o compreendem, como fundação do romance. O traidor é o personagem essencial do romance, o herói. Traidor ao mundo das significações dominantes e da ordem estabelecida. É muito diferente do batoteiro: o batoteiro pretende apoderar-se de propriedades fixas, ou conquistar um território, ou mesmo instaurar uma nova ordem. O batoteiro tem muito futuro, mas não tem devir nenhum. O padre, o adivinho, são batoteiros, mas o experimentador é um traidor. O homem de Estado, ou o homem da corte, são batoteiros, mas o homem de guerra (não marechal ou general) é um traidor. O romance francês apresenta muitos batoteiros, e os nossos romancistas são eles próprios muitas vezes batoteiros. Não têm uma relação particular com o Antigo Testamento. Shakespeare colocou em cena muitos reis batoteiros, que alcançavam o poder com batota, e que no fim de contas se revelavam bons reis. Mas quando ele encontra Ricardo III, eleva-se à mais romanesca das tragédias. Porque Ricardo III não quer simplesmente o poder, quer a traição. Não quer a conquista do Estado, mas o agenciamento de uma máquina de guerra: como ser o único traidor, e trair tudo ao mesmo tempo? O diálogo com lady Anne, que comentadores julgaram "pouco verosímil e exagerado", mostra as duas faces que se desviam uma da outra, e Anne que pressente, consentidora e fascinada já, a linha sinuosa que Ricardo começa a esboçar. E nada revela melhor a traição que a ESCOLHA DE OBJECTO. Não por ser uma escolha de objecto, má noção, mas porque é um devir, é o elemento demoníaco por excelência. Na escolha de Anne, há um devir-mulher de Ricardo III. De que é o capitão Achab culpado, em Melville? De ter escolhido Moby Dick, a baleia branca, em vez de obedecer à lei do grupo de pescadores, que pretende que toda a baleia seja boa para caçar. É esse o elemento demoníaco de Achab, a sua traição, a sua relação com Leviathan, essa escolha de objecto que o precipita num devir-baleia. O mesmo tema surge em PENTESILEIA de Kleist: o pecado de Penstesileia, ter escolhido Aquiles, quando a lei das Amazonas ordena que não se escolha o inimigo; o elemento demoníaco de Pentesileia arrasta-a num devir-cadela (Kleist causava horror aos alemães, eles não o reconheciam como alemão: a toda a brida no seu cavalo, Kleist faz parte desses autores que, apesar da ordem alemã, souberam traçar uma linha de fuga refulgente através das florestas e dos Estados. Tal como Lenz ou Büchner, todos os Anti-Goethe). Seria necessário definir uma função particular, que não se confunde nem com a saúde nem com a doença: a função do ANOMAL. O Anomal está sempre na fronteira, no limite de uma margem ou de uma multiplicidade; faz parte dela, mas fá-la passar noutra multiplicidade, fá-la devir, traça uma linha-entre. É também o "outsider": Moby Dick, ou então a Coisa, a Entidade de Lovecraft, terror."