Paulo Serra

Zangam-se as verdades


De acordo com o Notícias da Covilhã de 22 de Junho de 2001, o deputado e candidato a Presidente da Câmara da Covilhã José Carlos Lavrador (PS) terá afirmado (e cito o jornal) existirem "interesses obscuros" no processo de urbanização da cidade, dando como exemplos a "construção caótica" na zona baixa da cidade, a não demolição da torre de Santo António e o modelo "aberrante" de habitação social implementado no Teixoso. Ao que, e de acordo com o número de 29 de junho de 2001 do mesmo jornal, o actual presidente da Câmara Carlos Pinto (PSD) terá contraposto que (e cito também o jornal) "Eu também suspeito de muita coisa enquanto o PS cá esteve [na Câmara]", aconselhando Lavrador a que "se tem algo a dizer que o diga frontalmente" e ainda a que "olhe à sua volta e veja quem é que saiu de cá para arranjar tachos com base em negociações feitas aqui. É melhor estar calado e que não me faça abrir o saco".
Desta troca de acusações conclui a CDU, numa sua nota à comunicação social também veiculada pelo último número do Notícias da Covilhã, que "a reacção de ambos os candidatos constitui o melhor sinal de que, pelos vistos, algo andou e anda mal na nossa cidade", incitando ainda o PS e o PSD a denunciarem e a esclarecerem, "quer às entidades e órgão sociais competentes, quer a todos os cidadãos", o que "conhecem de potenciais ilícitos no domínio do urbanismo".

Este episódio - chamemo-lhe assim - não pode deixar de suscitar, ao cidadão comum, pelo menos duas reflexões.
A primeira é a de que, e como o próprio Carlos Pinto diz, José Carlos Lavrador deve dizer frontalmente quais são os "interesses obscuros" a que alude, a quem interessam eles e como. No entanto, Carlos Pinto deve exigir a si próprio a mesma frontalidade que exige a Lavrador, não se limitando a afirmar ter "suspeitas" em relação ao anterior mandato do PS (Suspeitas de quê? Em relação a quem?) e a referir que alguém (Quem?) terá arranjado "tachos com base em negociações" feitas na Câmara (Que tachos? Mediante que negociações?) A vida política e a vida em geral ganhariam, certamente, se quem toma a palavra o fizesse sempre de forma clara, frontal, transparente e sem se refugiar em meras alusões, insinuações e subentendidos (ou então, como o diz Wittgenstein noutro contexto, deveria calar-se).
Até porque - e é esta a segunda reflexão - quem se refugia em meras alusões, insinuações e subentendidos corre sempre o risco de levar o cidadão comum a pensar (provavelmente sem razões para isso) que "não há fumo sem fogo"; um pensamento que está na base, precisamente, da nota da CDU - que se limita, nesse aspecto, a concluir de forma irrepreensivelmente lógica o que não pode deixar de ser concluído. Dito por outras palavras: a impressão nítida com que o cidadão comum fica das declarações de ambos os candidatos é a de que quer um quer outro sabem "coisas" - que, eventualmente, outras pessoas na Covilhã também saberão - que, no entanto, não podem (ou não querem) dizer; ou que só podem dizer não as dizendo, dizendo-as sob a forma da alusão, da insinuação, do subentendido. E que esse dizer não dizendo visa, no fundo, a dissuasão mútua, numa espécie de "guerra fria" dos pequeninos - "Não me obrigues a dizer a verdade, senão..." -, de utilização da verdade como simples arma de arremesso. O que, para quem pretenda continuar a defender que há uma dimensão ética da política, que a política (também) é uma forma de ética - uma "ética republicana" ou "cívica" - não deixa de ser absolutamente deprimente.
Impõe-se, assim, que ambos os candidatos - e os outros que vierem a haver - não percam de vista que suspeitar não é provar, que insinuar não é dizer a verdade. Dos políticos em geral insinua-se, como se sabe, tudo e mais alguma coisa - que são corruptos e desonestos, que favorecem os amigos e correligionários, etc. -, sem que tenhamos de concluir que tais insinuações correspondem minimamente à verdade (ou que correspondem em todos ou mesmo na maior parte dos casos). Ora, quando são os próprios políticos a enveredar por tal caminho, que credibilidade pode ter ainda a Política?