Manuela Penafria

Ver o primeiro cinema


No primeiro domingo de cada mês, o programa "Onda Curta" (RTP 2) oferece-nos a possibilidade de ver as primeiras imagens em movimento registadas pelo cinematógrafo dos irmãos Lumière.

O contributo para o cinema de Louis e Auguste Lumière é extremamente importante. Eles foram os inventores do cinematógrafo, uma máquina que permitia, não só gravar e projectar imagens em movimento mas, também, duplicar película. O cinematógrafo era uma síntese de inventos anteriores. As experiências de físicos sobre as ilusões ópticas e as experiências de químicos e alquimistas sobre a fixação de imagens em película, permitiram aos irmãos Lumière avançar para a construção de uma máquina que fosse capaz de fazer algo absolutamente essencial para o cinema: a exibição pública de imagens em movimento.

Os irmãos Lumière não acreditavam na evolução do seu invento, diziam que o interesse do público era uma moda passageira, e o cinematógrafo estava ao mesmo nível que qualquer outro invento científico, ou seja, tinha a capacidade de ser utilizado para investigações científicas, por exemplo, analisar o crescimento de uma planta, o galopar dos cavalos, etc. Os seus esforços viraram-se então, para a construção e comercialização do seu invento. Mas, o seu maior contributo para o cinema foi o de enviarem operadores seus pelo mundo, a fim de recolherem imagens que satisfizessem o apetite do público e lhes permitisse, constantemente, mostrar a novidade que era projectar imagens em movimento.

O chamado primeiro cinema, ou seja, os primeiros 10 anos que se seguiram à celebrérrima primeira exibição pública do filme La sortie des ateliers Lumière, que teve lugar em 28 de Dezembro de 1895, no Grand Café du Boulevard des Capucines, em Paris, é o momento fundador de uma arte (a sétima) na altura e ainda hoje, nova. Do ponto de vista da História do Cinema, há um consenso generalizado sobre as características deste primeiro cinema: gravam-se e projectam-se imagens do quotidiano (representação realista do mundo), uso de um único plano fixo. A fotografia (a imagem fixa) contribuiu para a singularidade destes pequenos filmes. Das experiências fotográficas herdou-se o rigor e preocupação pelo enquadramento e composição dos planos.

Do ponto de vista da História do Cinema existe um consenso generalizado sobre o verdadeiro contributo dos irmãos Lumière. A saber, todos os filmes fazem parte de um momento embrionário do cinema. Os filmes são vistos na perspectiva de aí se encontrar o prenúncio do que viria a ser o cinema: em L'Arroseur arrosé, o filme cómico, em Dejeneur du bébé, os chamados homemovies, em L'Arrivée d'un Train, toda, ou quase toda, a escala de planos, em Demolition d'un mur, a possibilidade do cinema manipular o tempo, e assim por diante. Aos poucos ia-se descobrindo as potencialidades do novo meio, é disso exemplo o registo do primeiro travelling. Um dos operadores formados por Lumière, Promio, estava em Veneza, na Primavera de 1896. Aí verificou (muito oportunamente) que se o cinema podia reproduzir objectos móveis, também seria possível reproduzir, por meio do cinema móvel, objectos imóveis. Colocou então o cinematógrafo numa gôndola e fez o primeiro travelling. A ideia pegou. A partir daí registaram-se imagens a partir de comboios em movimento, balões, etc.

Mas, o público cansou-se destas tomadas de vistas e aplaudiu a chegada de registos que demostravam a considerada verdadeira vocação do cinema: contar-nos uma história. O público deixou de se emocionar com os simples registos do quotidiano e emocionou-se com as histórias que lhe eram contadas. Esta sua vocação permitiu-lhe evoluir, não só com a apresentação de novas histórias como no modo como no-las conta.

Hoje em dia, a chamada Nova Historiografia veio lançar um novo olhar sobre o primeiro cinema e dizer, no essencial, que não devemos julgá-los tendo em conta uma concepção que lhes é exterior e que hoje impera, designadamente, aceitar que a verdadeira vocação do cinema é ser narrativo.

Estes pequenos (apenas no sentido de tempo cronométrico) registos valem por si e não por uma concepção de cinema que lhes é exterior. Ver o primeiro cinema é aprender a ver cinema e aprender que o cinema é maior que algumas concepções que dele se fazem. Refiro-me à suposta natural vocação narrativa. Esta é apenas uma das suas vocações. Não é necessariamente obrigatório concentrarmos todos os esforços em apresentar o desenrolar de uma acção, com base num argumento anteriormente escrito.

O "Onda Curta" faz questão de nos mostrar durante 30 minutos seguidos, pequenos filmes. É de louvar esta insistência em dar-nos a ver para aprendermos a ver. Este tempo todo em que muitas imagens em movimento nos passam à frente dos olhos, mostram-nos o primeiro cinema no seu melhor: a sua capacidade em transmitir-nos emoções.

Para quem se interessa por cinema é absolutamente obrigatório ver muitos filmes do primeiro cinema e, eventualmente, concluir que se o cinema é capaz de nos emocionar ao contar-nos uma história, poderá, também, emocionar-nos sem nos contar uma história. O cinema tem a capacidade de estimular a nossa sensibilidade, com história ou sem história. Em grande parte, será por causa disto mesmo que o cinema é Arte. O primeiro cinema poderá então, fazer-nos recuperar a sensibilidade perdida.