José Geraldes

"Mas as crianças, Senhor?"


"As crianças são o melhor do mundo". Quem o diz é Fernando Pessoa. Por isso, todos os anos e, em todo o mundo, é assinalado, a 1 de Junho, o Dia Mundial da Criança. Associações, escolas, governos e instituições da sociedade civil realizam, neste dia, actos com a criança como tema central.
Há uma declaração oficial sobre os direitos da criança, desde 1959. As Nações Unidas dispõem de um organismo especializado - a UNICEF - que se ocupa do cumprimento da declaração referida.
E que vemos hoje no mundo, no séc. XXI, no terceiro milénio da Humanidade? Em muitos países, mesmo nos que ratificaram os Direitos da Criança, a criança é objecto da mais vil exploração.
Segundo os números da UNICEF, milhões de crianças caem anualmente nas redes internacionais da pedofilia. Na Internet, figuram imagens de pornografia infantil. Pedófilos equipados com câmaras de vídeo filmam relações com as crianças para venda comercial.
O número de crianças exploradas no trabalho, com idades entre os cinco e os catorze anos teve um aumento exponencial sobretudo a partir dos 80, do séc. XX. E são dezenas de milhões sujeitas à escravatura do trabalho infantil, nas minas, fábricas, oficinas e têxteis. No Brasil, é apontado o número de quatro milhões de crianças em actividades ilegais.
Portugal não foge à regra. Torna-se difícil quantificar as crianças que no nosso País, exercem trabalho fora da lei. Nos últimos anos, acções têm sido levadas a cabo para a diminuição do fenómeno. Mas continua a ser preocupante a situação actual.
Não só o trabalho infantil e a prostituição exploram as crianças. Também as guerras recrutam, no mundo infantil, soldados para aprender a matar. Em 25 países, crianças menores de 16 anos lutam em guerras. Calcula-se o seu número em mais de 300 mil.
Em dez anos, armas e minas mataram dois milhões de crianças e mutilaram cinco milhões de outras. No mesmo período de tempo, doze milhões foram separadas das suas famílias ou ficaram órfãos.
Perante tal situação, num congresso sobre o chamado turismo sexual, uma jovem filipina desabafou: "Duvidamos da sinceridade dos governos, duvidamos das vossas intenções, exigimos acções mais concretas." E que acções têm sido desenvolvidas? Poucas, muito poucas.
Afogados no ritmo da vida moderna, as famílias demitiram-se dos seus deveres. Os pais querem que os filhos descansem a escola. O tempo que é dedicado às crianças, revela-se diminuto. As "baby-sitters", as amas e a televisão substituíram os pais.
Os modelos de vida que a criança memoriza, são exactamente o da televisão, com todas as suas consequências nefastas que daí advêm. Para compensar as suas ausências, os pais brindam os filhos com brinquedos de toda a ordem.
A este propósito, o inquérito realizado na Universidade de Lovaina, é exemplar. Às crianças com menos de doze anos foram distribuídos três desenhos que representavam diversas maneiras de celebrar o seu aniversário. Pedia-se às crianças para dizer qual dos três desenhos mais lhes agradava.
O primeiro representava uma criança rodeada da gama mais variada de brinquedos. O segundo mostrava a mesma criança à mesa com os pais, enquanto se preparava para abrir um grande embrulho com prendas. O terceiro era a fotografia dessa mesma criança com muita gente, pais, familiares e amigos. E todos a jogarem e divertirem-se, mas sem nenhum brinquedo.
O resultado do inquérito foi este: 15 por cento das crianças escolheu o primeiro desenho. 15 por cento optou pelo segundo. E 75 por cento preferiu o terceiro. A evidência da necessidade da presença dos pais, familiares e jogos dá que pensar. Se somarmos a este resultado a falta de exigência e de modelos de personalidade como exemplos a imitar, a conclusão é pessimista quanto ao futuro da sociedade. E as gerações futuras pedirão contas aos seus pais da herança que lhes deixaram.
Pitágoras, sábio da Grécia Antiga, bem o pressentiu quando escreveu: "Educai as crianças e não será preciso, depois, castigar os homens".
A declaração dos Direitos da Criança, passados 20 Séculos, repete a ideia de Pitágoras. "A criança deve ser educada num espírito de compreensão, de tolerância, de amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e no sentimento que lhe é próprio de consagrar a sua energia e o seu talento ao serviço do seus semelhantes".
Quantos governos, quantos países, quantas famílias fazem o mínimo esforço para alcançar este objectivo? É caso para dizer, como o poeta: "Mas as crianças, Senhor?"