José Geraldes
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Só dá vontade
de vomitar
"Onde é que
isto vai parar?" Era a pergunta da capa da última
edição da Focus. E o Expresso, de sábado
passado, anotava que isto estava ainda só no começo
ao repertorar uma série de reality-shows
produzidos noutros países e alguns já comprados
pelas televisões privadas portuguesas. Isto significa
o Bar da TV da SIC e o Big Brother, em segunda
edição, da TVI.
O clamor dos fazedores de opinião ergueu-se sobretudo
a propósito da cena do Bar da TV com a difusão
de uma conversa privada da concorrente Margarida, de Borba,
quando os pais decidiram ir buscá-la devido a cenas
chocantes transmitidas na véspera. Os pais só
foram autorizados a falar com a filha às 22 horas
e, em directo. A jovem, em choro convulsivo permanente,
pediu uma conversa a sós. Surge uma "psicóloga"
argentina, o produtor a verificar se a câmara está
a transmitir a cena e acompanha a Margarida à sala
com a porta aberta. A conversa privada foi ouvida e vista
por milhões de portugueses.
Os comentadores classificaram a cena de "objecção
absoluta". A Alta Autoridade para a Comunicação
Social limita-se a um aviso à SIC. O Vice-Presidente
da bancada parlamentar do PS considera que houve violação
de direitos fundamentais. No entanto, Emídio Rangel,
a 7 de Junho do ano passado, escrevia no jornal Público:
"O Big Brother ultrapassa todos os limites,
viola todas as regras que regulam a questão da
dignidade humana. A SIC não podia exibir uma coisa
daquelas". E defende-se agora que se sente "perseguida"
por a TVI haver transmitido cenas de "sexo explícito"
em directo.
Em França, a estação televisiva M6
começou a transmitir o Loft Story, o equivalente
do Big Brother. Após a emissão dos
primeiros directos, o Conselho Superior do Audiovisual
interveio imediatamente. Entre nós, país
de brandos costumes, a Alta Autoridade para a Comunicação
Social seguiu a política do deixa andar. Só
agora acordou com processos contra a SIC e a TVI que não
têm cumprido a Lei de Televisão. Veremos
o que se vai passar. Mas, a julgar pelo passado, ou nada
acontecerá, ou o processo vai prescrever, ou haverá
um perdão como para os clubes de futebol.
Depois da Rádio Renascença haver proposto
a auto-regulação na Comunicação
Social, em Março último, Emídio Rangel
já dá o seu acordo a uma co-regulação
das televisões sobre os reality-shows. Mas
quem ainda poderá pensar no benefício da
dúvida? A Associação Portuguesa de
Imprensa (ex-AIND) foi avisada ao propor um código
de ética para os media e as empresas jornalísticas.
Código que, à primeira vista, suscitou reservas
mas que tem plena actualidade e inteira razão.
Toda a questão se resume à ética:
Victoria Camps, Catedrática de Filosofia do Direito,
Moral e Política da Universidade Autónoma
de Barcelos coloca o problema: "A responsabilidade
e a autonomia éticas desaparecem facilmente quando
outros imperativos se afirmam como dominantes e incontornáveis.
O principal é o dinheiro". Ora, em televisão,
dinheiro equivale a captar as maiores audiências
e o maior volume de publicidade. Na Europa, só
a televisão portuguesa concentra 60 por cento do
mercado publicitário. Normalmente, é a imprensa
escrita que reúne mais publicidade. E os reality-shows
atraem os investimentos publicitários. Com o Big
Brother, a TVI ultrapassou a SIC!
Mas quem vê estes programas? Uma sondagem do DN,
de 20 de Maio, traça o perfil: mulher entre os
18 e 24 anos (75,4 por cento) e pertence às classes
média baixa/baixa. Pinto Balsemão, dono
da SIC, declarava ao Expresso que as classes A e B, ou
seja, os mais instruídos também aderiam
aos reality-shows. O curioso é que, na sondagem
citada, as mulheres que vêem os programas são
quem mais defende uma regulamentação especial.
A cultura do facilitismo que se instalou faz com que dezenas
de milhares de pessoas se inscrevam neste tipo de programas.
O trabalho, o mérito e o esforço são
postos de lado. A Margarida de Borba queria também
a sua oportunidade para ser vedeta musical. Isto na linha
da profecia do pintor americano Andy Warhol que antevia
quinze minutos de glória a cada ser humano no século
XXI. A população de Borba, inclusive o presidente
da autarquia, considerou reaccionária a atitude
dos pais da Margarida. Ou seja, tudo se aprova mesmo o
strip-tease que se seguiu ao toque do Pai-Nosso no violino
pela Margarida. Que salada russa!
Francamente já não há valores nem
princípios nem respeito pelo sagrado nem pela intimidade,
nem pela privacidade. E muito menos pela dignidade humana.
Os Bispos têm toda a razão quando, na Nota
Pastoral, falam de crise de sociedade, crise de civilização.
Miguel de Sousa Tavares usou uma expressão para
classificar o Bar da TV: "Esgoto nocturno
a céu aberto". Karl Popper, no livro já
famoso Televisão: um Perigo para a Democracia,
escreve: "Em democracia, nada justifica a tese de
um director de cadeia de televisão para quem o
facto de apresentar programas cada vez mais medíocres
corresponde aos princípios da democracia "porque
é o que as pessoas esperam".(...) Os princípios
(desses directos de televisão) conduzem a propor
aos telespectadores emissões cada vez piores que
o público aceita desde que se lhes acrescente violência,
sexo, sensacionalismo. De facto, quanto mais uso se fizer
deste género de ingredientes, mais se incita as
pessoas a voltarem a pedi-los".
Popper, do seu túmulo, ao ver o Bar da TV
e o Big Brother, lá dirá que, afinal,
tinha razão. As alterações à
Lei da Televisão impõem-se. E uma atitude
crítica e intervenção activa dos
telespectadores. Temos que acabar com a passividade e
o conformismo. Com programas destes em televisão,
estamos a minar os alicerces da sociedade. Depois não
nos queixemos.
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