Urbi et Orbi - Este dicionário significou um
grande investimento de tempo e dinheiro. Foi complexo
desenvolver este trabalho?
João Malaca Casteleiro - É muito difícil
manter as mesmas pessoas a trabalhar durante os doze anos
num projecto. É necessário renovar as equipas
e é esse trabalho de formação dos
colaboradores que mais tempo ocupa. Durante nove anos,
os próprios horários de trabalho estiveram
sujeitos ao horário da função pública.
Só nos últimos três anos é
que tivemos acesso às instalações
24 horas por dia, sete dias por semana. E portanto neste
contexto tudo fica mais caro porque se fosse possível
constituir uma equipa e mantê-la oito anos a trabalhar
ininterruptamente e em boas condições, nós
em oito anos teríamos feito o dicionário
e ele teria custado muito menos dinheiro. Considera-se
que foi muito o dinheiro que se gastou, mas eu posso lhe
dizer que as pessoas eram muito mal pagas e houve pessoas
e tarefas que nem sequer foram pagas.
U@O - Como é composto este dicionário?
J.M.C. - Este é um dicionário da Língua
Portuguesa Contemporânea que abrange os séculos
XIX e XX. Contém cerca de 70 mil entradas lexicais,
170 mil acepções ou definições
e 240 mil vocábulos. Os artigos do dicionário
são riquíssimos de informação
porque para além das definições têm
também cerca de 85 mil sinónimos e 16 mil
antónimos. Fazem também parte desta obra
cerca de 22 mil combinatórias e 90 mil expressões
para ilustrar tudo isto. Quanto aos estrangeirismos, são
cerca de um milhar que aportuguesámos, isto é,
adaptámo-los às regras morfofonológicas
e ortográficas do português, ou então
traduzimos por decalque semântico.
No panorama da Língua Portuguesa, é um dicionário
novo, inovador do ponto de vista metodológico e
de conteúdo informativo.
U@O - Estava à espera do sucesso deste dicionário?
J.M.C. - Eu sempre acreditei neste dicionário,
porque tenho consciência da qualidade do trabalho
que produzimos e por isso sabia que ele ia ser bem aceite.
Infelizmente não fui acompanhado nessa previsão
e lamento que haja muita gente a querer agora o dicionário
e que tenha de esperar mais um mês, para que haja
uma nova reimpressão.
U@O - Acha que nas próximas tarefas não
vai encontrar os mesmos obstáculos que encontrou
na elaboração deste dicionário?
J.M.C. - Eu acredito que sim, porque há muitas
décadas de anos que a Academia das Ciências
de Lisboa não tinha a visibilidade pública
que este dicionário lhe deu. No mesmo dia apareceu
em quase todos os órgãos da Comunicação
Social do País. Neste momento há receptividade
do próprio ministro da Ciência e Tecnologia,
Mariano Gago, e de outras entidades oficiais para um apoio
aos nossos trabalhos. Finalmente acredita-se na Academia.
U@O - Pode dar alguns exemplos de novas palavras que
podemos encontrar neste dicionário?
J.M.C. - Há muitas palavras novas que eram
estrangeirismos e que nós aportuguesámos
como por exemplo: saber fazer para traduzir Know How,
correio electrónico para traduzir e-mail, registo
de embarque ou de entrada para traduzir check-in; exame
geral para traduzir check-up. Há muitos outros
termos acabados em ismo, como por exemplo, cunhalismo,
salazarismo, guterrismo. Temos ainda expressões
novas como vaca louca, ciberespaço, teletrabalho,
telemóvel. Também palavras como teixosense,
covilhanense ou albicastrense constam neste dicionário.
Normalização de estrangeirismos cria
polémica
U@O - Mas houve alguns estrangeirismos que não
traduziu?
J.M.C. - Os termos do tipo jazz, leasing, marketing,
toilette, copywriting são termos generalizados,
internacionais que mantivemos tal e qual no dicionário
o que também foi uma inovação. Em
geral os dicionários remetem esses termos para
um anexo. Na elaboração deste dicionário
evitámos os anexos porque o leitor procura a palavra
mas sim na ordem alfabética e não nos anexos.
Também na ordem alfabética registámos
os principais signos, siglas e acrónimos que aparecem
na comunicação social.
U@O - Como é que reage à polémica
que a nova grafia dos estrangeirismos tem provocado?
J.M.C. - Eu reajo bem. Acho que as reacções
que se estão a verificar são aquelas que
eu estava à espera portanto não me estão
a surpreender e devo dizer que o balanço é
bastante positivo. Eu explico sempre esta reacção
através da definição de signo linguístico
de Saussure. Para este linguista, o signo é a combinatória
de uma imagem acústica com um significante. Mas
ele só tinha presente a língua oral e não
a língua escrita. Se na definição
tivermos em conta a língua escrita, na parte significante
do signo linguístico não intervém
só a imagem acústica, mas também
a imagem gráfica. Quando propomos lóbi as
pessoas reagem porque têm gravada na mente a imagem
gráfica do inglês e substituí-la exige
algum sacrifício.
U@O - Não teme que isso possa descaracterizar
a Língua Portuguesa?
J.M.C. - Pelo contrário, esta inovação
preza a identidade da Língua Portuguesa porque
estas novas palavras são escritas de acordo com
as regras morfofonológicas e ortográficas
do português.
U@O - Porque é que este dicionário é
apresentado como o "dicionário dos dicionários"?
J.M.C. - No panorama português não há
outro dicionário, com a mesma riqueza e actualidade
do ponto de vista lexicográfico, metodológico.
Por outro lado, é o dicionário de uma instituição
que tem como objectivo essencial do seu estatuto cumprir
e defender a Língua Portuguesa. Todas as pessoas
estavam à espera que este fosse um dicionário
padrão, de referência da Língua Portuguesa
no domínio do léxico por isso ele é
um dicionário muito especial. É um dicionário
com outra responsabilidade e muito diferente dos dicionários
elaborados pelos editores.
U@O - Este dicionário é publicado depois
do Acordo Ortográfico celebrado em 1990. Mas dos
sete países lusófonos que o assinaram apenas
Portugal, Brasil e Cabo Verde é que o ratificaram...
J.M.C. - Tenho muita pena de que o nosso Governo não
tenha tomado a peito a ratificação desse
Acordo Ortográfico. A iniciativa de um primeiro
acordo partiu do Brasil, em 1986, mas foi muito mal aceite
no nosso país. Para adoptarmos uma ortografia tem
de haver o elevado grau de aceitação que
conseguimos no acordo ortográfico de 1990. Este
acordo era muito mais consensual e menos extremista em
muitos aspectos. Era um bom acordo ortográfico.
Foi a primeira grande medida de política comum
da Língua Portuguesa exercida por todos os países
lusófonos, que depois não foi por diante,
o que é revelador da falta de empenhamento político
em levar a bom termo esta medida. Tinha sido necessário
dialogar com os países africanos e ter-se tentado
convencê-los da importância da ratificação
deste acordo. O que se pretendia com este acordo ortográfico
era reduzir as diferenças ortográficas entre
Portugal e Brasil ao mínimo possível e lutar
por mantermos uma mesma ortografia.
U@O - Como é que descreve a profissão
de dicionarista?
J.M.C. - É uma profissão aliciante.
Cada palavra é um desafio que nos obriga a contactar
com novas realidades da língua. Agrada-me também
o trabalho de equipa. Hoje não conseguimos imaginar
uma pessoa isolada no seu gabinete ao longo de anos a
elaborar um dicionário.
U@O - Como é que está a Língua
Portuguesa?
J.M.C. - A Língua Portuguesa está bem
de saúde. É uma língua de comunicação
internacional falada por cerca de 200 milhões de
falantes no mundo. É uma língua de grande
impacto a nível mundial. Mas precisa de ser cuidada
e acarinhada. Precisa de ser defendida com uma política
agressiva. O espanhol que é falado por 350 milhões,
está já a instalar-se no Brasil e em Portugal.
A nível político ainda não se compreendeu
que há todo o interesse em alargarmos o ensino
do espanhol ao nível do ensino básico e
secundário... mas com a condição
que Espanha também alargue o português ao
ensino básico e secundário. Porque se nós
lusofalantes e hispanofalantes nos tornássemos
uma grande comunidade em que todos fossem capazes de falar
o português e o espanhol, éramos o maior
bloco linguístico do mundo.
Uma vida dedicada às palavras
U@O - Como é que consegue conciliar a vida
de lexicógrafo com a de professor na UBI?
J.M.C. - É preciso uma grande organização,
muita vontade e determinação, muito empenhamento.
Não se consegue fazer tudo com apenas 35 horas
de trabalho por semana. Para conciliar estas duas ocupações
preciso em média de 70 horas de trabalho semanais.
U@O - Como é que viu a criação
da Unidade de Artes e Letras na UBI?
J.M.C. - Com uma grande simpatia e admiração.
Era absolutamente necessário que esta universidade
não se ficasse pelas ciências sociais e engenharias.
mas que também incluísse a vertente das
Letras e das Artes.
U@O - Acredita que a UBI segue no bom caminho?
J.M.C. - Creio que sim. Com a criação
da faculdade das Ciências da Saúde com estes
novos cursos que entretanto abriram e com o empenhamento
do reitor, do corpo docente, dos estudantes demonstra
que há aqui uma grande vontade de andar para a
frente. É a vantagem das universidades novas que
no caso da UBI também tem um agradável ambiente
de trabalho.
U@O - O que lhe reserva o futuro?
J.M.C. - Trabalho não falta. Este é
um primeiro trabalho e eu não posso, nem quero,
que a Academia pare por aqui. Portanto há a necessidade
de elaborar um dicionário escolar de um só
volume com cerca de 35 mil entradas lexicais. Depois é
necessário elaborar um bom dicionário de
sinónimos da Língua Portuguesa e continuar
este primeiro dicionário, com um dicionário
da Língua Portuguesa Clássica que há-de
abranger os séculos XVI, XVII e XVIII. E por fim
a elaboração do dicionário da Língua
Portuguesa Medieval que vai abranger os séculos
XIII, XIV e XV. Neste momento, estamos a trabalhar na
adaptação á norma do português
de um dicionário brasileiro - dicionário
lusófono de António Ice.
U@O - Qual a radiografia que faz da situação
actual da Academia das Ciências de Lisboa?
J.M.C. - A Academia é uma instituição
centenária e cuja existência não pode
ser discutida dado que existe por direito próprio.
Mas esta não pode ficar fechada ao nível
dos gabinetes porque infelizmente tudo o que não
tem visibilidade na Comunicação social não
existe. A verdade é que essa componente tem sido
um pouco descurada. Este trabalho que estamos a fazer
é um contributo para a dinamização
da Academia. Com os novos trabalhos que temos planeados
vamos contribuir para a renovação necessária
e natural da própria Academia.
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