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Um certo sorriso e a urgência
do olhar
Edward Yang sustenta no
filme Yi Yi, pela prática inteligente da imagem,
um dos poderes reconhecidos ao cinema: ensinar a ver melhor.
Será em tom irónico que esta afirmação
é posta na boca de um personagem neurótico
que dá pelo apelido de Baleia? Poderemos ver no
pormenor desta escolha uma confissão de Yang, reconhecendo
que, hoje, é preciso ser doente para se ser autor
de cinema fazendo filmes - caminho que, pelos vistos,
só a paciência oriental parece ainda percorrer
com algum sucesso?!...
Seja como for, o que é que Yi Yi nos pode ensinar
a ver melhor?
A realidade da vida no seu quotidiano?
Certamente. Já que a realidade de que aqui se fala
é "tudo contra o que esbarramos no caminho
para a morte, portanto, aquilo que nos interessa"
. Então, Yang encoraja-nos, em vida e enquanto
é tempo, a olhar calmamente a morte nos olhos,
porque com ela vamos esbarrar a qualquer momento.
É minha opinião, que
um dos pontos de vista de Yang em Yi Yi é particularmente
"monstrativo" do encontro inevitável
da vida com a morte. De facto, em diferentes ocasiões,
e com diferentes encenações, ocorre este
encontro em vários segmentos do filme. O de maior
ressonância, até porque várias vezes
repetido, ocorre nos planos das visitas dos familiares
à avó acamada, no seu quarto, em estado
de coma. Estado que, rigorosamente, ainda não é
mas, ao mesmo tempo, já é morte. Que melhor
imagem poderia ser fabricada para antever este encontro
e nos encorajar à reflexão?
Nestas visitas é a imagem da morte, como a pensamos
sem dela ver imagens, que Yang constrói e mantém
sempre presente com a ajuda do espectador, a quem ela
é sugerida pelo enquadramento escolhido, deixando
os limites do quadro contaminados de sentido. O rosto
da avó, espelho da "morte natural", que
não vemos, passa a ser a imagem da morte - a morte
em abstracto, mas em potência. É este rosto
construído em fora de campo que confronta todos
os membros da família, cada um por sua vez.
Na duração destes longos planos gémeos
(em que apenas muda a personagem que vem falar), Yang
recria um espaço e um tempo simplesmente fascinantes
em que é atribuído à palavra o poder
e o dever de regatear, disputar e resgatar a vida à
morte.
Estes planos apontam, como norma, para a possibilidade
do contracampo que lhe asseguraria a continuidade (mostrando
o rosto da avó para quem as personagens falam).
A recusa consciente desta norma de montagem reforça
o carácter de incomunicabilidade, patente nos monólogos
das personagens que, assim, são forçadas
a olhar para dentro de si. Olham-se na sua impotência
de comunicar a vida e é dramático descobrir
que não se tem nada para dizer. Nestes planos,
Yang reforçou a posição central do
espectador, já que a personagem que fala é
colocada a um dos cantos da imagem e o seu olhar percorre
o campo na diagonal na direcção do rosto
da avó, em fora de campo. Assim, o nosso olhar
completa uma triangulação que nos compromete
e nos obriga, também, a olhar para dentro de nós.
Porque o contracampo não nos devolve o rosto da
avó, é o nosso olhar que é compelido
a encontar respostas, a julgar os argumentos da vida -
como num juízo final.
Ficamos sem saber de que lado nos olham a vida e a morte,
estupefactos com a descoberta do vazio dum quotidiano,
que poderia ser o nosso, que, por mais que se exprema,
não dá nada como matéria de expressão
verbal. Da maneira irónica como Yang pensa a comunicação
(social), experimenta-se ainda a utilização
profilática de um elemento social estranho à
instituição familiar, uma enfermeira lendo
as notícias dum jornal.
Perante tal cenário, quem é que precisa,
afinal, de acordar?!
Porém, neste caos, a imagem
continua eloquente.
Escolhendo o fora de campo, Yang confirma que a imagem
pode ser muito mais do que o visível na superfície
do ecrã. Continuando a pôr em prática
esta opção estratégica, Yang vai
promover novos e esclarecedores encontros entre o par
de opostos - vida e morte, os verdadeiros protagonistas
da história.
A imagem da morte é convocada no longo plano em
que a criança descalça as sapatilhas e se
atira para a piscina. O plano mantém-se fixo, a
criança desaparece do nosso campo de visão
e o ruído ampliado diz-nos que a criança
se debate na água, prestes a afogar-se. Ficamos
suspensos, como a imagem do plano fixo, tensos e ansiosos
queremos ver mais e o que vemos é o que cremos:
a morte absurda duma criança. É a imagem
da morte que se impõe naquele plano fixo e nos
interpela no paroxismo do horror. É o que queremos
ver?
Mudança de plano. Neste e nos planos seguintes
não se confirmam nem se desmentem as nossas crenças.
Angustiados, com elas nos ficamos até ao momento
em que vemos a criança, toda encharcada, entrar
em casa. Um sorriso de alívio liberta-nos do cenário
duma morte inútil e sem sentido, que não
queríamos mas que ajudámos a construir.
A imagem da morte é, de novo,
sabiamente convocada quando o tio da criança regressa
a casa, onde fica sozinho e inconsolável, após
a desastrosa festa do baptizado do filho. Longo plano
fixo do interior do apartamento. Não se vê
ninguém até entrar a esposa - resmungando
primeiro, gritando depois pelo marido que se fechara na
casa de banho.
Mantém-se o plano com entradas e saídas
de campo da esposa, correndo e gritando desesperada. O
som fala-nos da água que corre na banheira, das
corridas da mulher que diz cheirar-lhe a gaz, das pancadas
que ela desfere para arrombar a porta da casa de banho.
Deste longo plano fixo o que vemos, ainda e sempre, é
aquilo que a materialidade das imagens insiste em não
exibir: a imagem da morte, por suicídio neste caso.
Nisso somos levados a crer e nisso cremos. Mas, nesta
situação, há uma mudança para
novo plano fixo e razante que deixa ver o corpo do homem,
caído de costas, no chão da casa de banho.
Confirma-se a nossa crença. À frente dos
olhos temos o corpo da vítima. Desta vez não
há margens para dúvidas... ou será
que o ventre se mexeu?!...
Mudança de plano e, logo depois, vemos que, afinal,
o homem não morreu, está sentado no sofá
e, chorando no seu ombro, a mulher pede-lhe mil desculpas...
Tudo fôra apenas um lamentável acidente.
Distendemo-nos e rimos. Rimos, tranquilizados, porque
não queríamos aquela morte estúpida
mas que ajudámos ainda a construir.
A imagem da morte é de novo
convocada, mas agora através da televisão.
Pela obscenidade congénita das imagens e do comentário
da televisão, que nos informa que o Baleia espancou
brutalmente, num ajuste de contas e até à
morte, o professor de inglês da sua namorada porque
com ela e com a mãe dela se envolvera sexualmente.
O curto plano de conjunto dá pouca importância
ao aparelho de televisão, reforçando-se
o comentário do apresentador em voz off com que
somos confrontados. Mudança de plano recriando
uma imagem televisiva feita com câmara móvel,
simulando uma reportagem de TV que mostra o local do crime
ainda com marcas de sangue. Em fundido, sobrepondo-se
e correspondendo ao local do crime, é inserido
um cenário virtual de um videogame em que se reconstitui
o espancamento entre esguichos de sangue e guinchos ou
grunhidos do tipo dos jogos street fighter ou mortal combat.
Fade para negro. Rimos à gargalhada. Mas rimos
de quê, afinal? Rimos da morte? Rimos da televisão
e do videogame?...
Nesta situação, ao contrário das
anteriores, não fomos convidados a participar na
criação dum cenário de morte. Estamos
inocentes, nem tivemos tempo para querer aquele final
para o professor de inglês. Até custa a crer.
Não está certo, mas rimos.
Contudo, a nossa gargalhada incrimina-nos, como sádicos,
se não atirarmos as culpas para cima doutro monstro.
Em concreto, rimos por causa da encenação
desta morte. A morte televisual. Depois de o ter feito
em relação à imprensa, Yang convida-nos,
agora, a ajustar contas com a televisão. A nossa
gargalhada é uma inequívoca tomada de posição.
Um manifesto contra a desumanização das
imagens visuais da televisão, dispositivo que,
pela sua natureza, é inimigo da Imagem.
Tudo estaria bem, não fôra, de facto, tratar-se
aqui de uma outra morte, a morte simbólica da Imagem
e do Cinema, brutalmente massacrados pelos grandes cetáceos
que respondem pelos apelidos de televisão e realidade
virtual. Neste caso, não está certo e não
há motivos para rir, pois o nosso riso não
devolverá a vida ao que a prática televisiva
boçalmente vai matando.
Por fim, a imagem da morte é
convocada para uma reconciliação natural
e espontânea com a vida. Nem podia ser de outro
modo. De facto, o que seria da morte se não houvesse
vida?
Plano fixo do interior do apartamento. Com surpresa, através
de um sobreenquadramento conseguido pela porta entreaberta
do quarto, vemos a avó de pé e esperando
a neta. É por este quadro dentro do quadro, entrando
por esta nesga, por esta pequena abertura, que Yang nos
propõe a construção de uma última
imagem: a do amor. Imagem que germina numa fissura mágica
do tempo, com gestos simples e objectos banais que, de
repente, ficam prenhes desse fluído maravilhoso
que dá sentido à vida, à morte e
a este grande filme.
Com um sorriso no olhar...
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