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O Pelourinho da Covilhã:
Silo-Auto versus Praça Urbana
Quanto às cidades,
sejam elas muito grandes, médias ou pequenas, o
que evidenciam os numerosos estudos e debates efectuados
é o seguinte: a aplicação dos investimentos,
o ambiente e qualidade de vida, a política do automóvel
em meio urbano, são três dimensões
que têm de estar estreitamente ligadas.
Quando há problemas, é a integração
das soluções que os permite atacar. Neste
sentido, a política de transportes (individuais
e colectivos) deve preconizar o mínimo de efeitos
negativos no meio ambiente e deve subordinar-se às
opções de ordenamento do território.
São estas últimas que devem "ditar"
as suas leis à política de transportes.
Dentro deste princípio orientador, e num momento
em que surgiram recentemente na imprensa alguns artigos
sobre as obras em curso no Pelourinho, não poderia
deixar de reflectir sobre as mesmas na perspectiva técnica
e científica, única motivação
que inspira estas linhas.
O Pelourinho, actual Praça do
Município, pelas funções urbanas
nele sediadas, detém uma forte centralidade. É
lugar de atracção e é também
lugar central que diversos fluxos atravessam, possuindo
uma elevada potencialidade de vivência urbana, acentuada
pelo carácter simbólico na história
da cidade.
Eis uma passagem que caracteriza a
situação no fim dos anos setenta: "O
Pelourinho é o coração da cidade!
E como tal ali converge tudo o que de bom e mau existe,
ou existiu: exaltação patriótica,
comemorações cívicas e religiosas,
música de bombos ou pancadaria de pau, conversas
serenas ou encontros de ódios, gente de bem, arruaceiros,
pequenos e grandes, tudo por ali passou deixando um rasto
de vida nas pedras gastas da calçada.... Era então
o Pelourinho uma bonita praça gradeada, tendo por
fundo a imponência austera da Casa da Câmara,
construção filipina, que abria ao meio um
arco, o Arco da Cadeia, para dar passagem para a Rua 1º
de Dezembro. (...) No centro a graciosidade do coreto
era a alegria da música que as Bandas (houve mais
que uma) atiravam ao ar puro e frio da serra nevada. Tinha
árvores frondosas ao redor, a que se arrimavam
bancos de madeira, aqueles bancos que ficaram na história
pelos versos de João Figueiredo e música
do maestro Gomes: "Ó bancos do Pelourinho
que saudades me fazeis...". Eram o descanso dos velhos
e a cama dos vagabundos, bêbados e desempregados
inatos, que neles curtiam a bebedeira em noites quentes
de Verão e no Inverno sobre o acolchoado da neve.
Todos os Domingos se realizava ali o mercado. (...) Passaram
anos. Novos prédios surgiram delimitando a praça.
Uma placa central sem arte, nua de árvores onde
devia estar há muito, num pedestal florido uma
estátua ou o pelourinho desaparecido. Passou a
chamar-se Praça do Município... Novas modificações
estão em curso. Foram abaixo os últimos
velhos prédios que tinham história que será
bom recordar. E agora passou a Centro Cívico!...
Novos edifícios vão surgir com arcadas soturnas
onde não haverá cafés com esplanadas,
discoteca ou livraria, casa de modas enfim qualquer comércio
engalanado, vivo, que à noite faça palpitar
a praça como Centro Cívico. Mas uma coisa
é certa. Por mais mudanças de estruturas
e de nomes que os anos possam trazer e os homens destruir
ou construir, a praça que é o "coração
da cidade", não deixará de chamar-se
- O Pelourinho". (Ilda Catalão Espiga,
in Notícias da Covilhã, n.º 3161, 7
de Março de 1980.)
O Pelourinho, ou a sua modernização,
foi assunto em foco em meados de 1973. A modernização
então "sonhada" contemplava um hotel
(de dezassete andares!), um parque subterrâneo de
estacionamento e um centro comercial (Notícias
da Covilhã, n.º 2833, 28 de Julho de 1973).
A dita modernização não haveria de
ir tão longe, mas foi suficiente para desfigurar
a praça estilizada em "meio-antigo, meio-moderno",
como então se dizia.
Actualmente, nova "modernização"
está em curso e as "novas perspectivas"
vêm retomar, nas opiniões do Arq. Nuno T.
Pereira (autor do projecto) e dos autarcas, certezas e
convicções inabaláveis numa matéria
onde tal nunca poderá ser garantido. Convém
lembrar que uma cidade é um sistema dinâmico
de organização, com as mais diversas funções
integradas, cujo futuro está dependente da qualidade
de cada uma dessas funções. Além
disso, há necessidade de ponderar (e acautelar)
processos de geração de expectativas sempre
associados a estas intervenções que, a não
serem preenchidas, são fonte de efeitos perversos,
indesejáveis, que podem ir mesmo contra os objectivos
iniciais dos decisores, por mais bem intencionados que
tenham sido.
A função transporte/estacionamento é
determinante, podendo facilitar ou dificultar o funcionamento
da cidade. Pode acentuar desequilíbrios ou contribuir,
por si própria, para a qualidade do ambiente e
da vida urbana. No caso vertente, a enorme sensibilidade
(e fragilidade) das estruturas físicas e sociais
da área aconselharia a uma intervenção
bem planeada e de impactes controláveis, sob pena
de não serem garantidos efeitos de sustentabilidade
e regeneração, com capacidade de irradiação
a toda a área urbana envolvente. Daí a importância
das exigências funcionais que devem orientar estas
acções de intervenção nos
tecidos urbanos consolidados e tradicionais.
É daqui que nasce o meu pessimismo
em relação à solução
encontrada: a construção de um silo-auto
de "grande" capacidade no seu subsolo, mantendo
à superfície a circulação
automóvel, embora com alguns (poucos) ganhos de
área para os peões. Mas, na essência,
o "convívio" forçado e nefasto
entre automóveis e pessoas manter-se-á e,
quando assim acontece, é sempre em prejuízo
destas últimas. Penso se não seria uma "utopia"
mais razoável descentralizar o estacionamento para
outros locais, como o Campo das Festas (eventualmente
também no subsolo), diminuindo a pressão
da circulação automóvel sobre o Pelourinho,
ao mesmo tempo que se fomentariam os fluxos pedonais entre
as zonas do Campo das Festas/Jardim e a de S. Silvestre
e do Mercado, sendo isto possível com medidas adequadas
de atractividade no espaço público para
os peões, numa área que, em toda a sua extensão,
não apresenta alterações significativas
de cotas e que é de grande centralidade no contexto
da cidade. Adicionalmente, melhorava-se a articulação
entre as zonas de vale da Covilhã e, bem assim,
a própria ligação entre os pólos
da academia, que a cidade interioriza cada vez mais como
sua.
Os cidadãos desejam viver em cidades humanizadas
(Vejam-se os inquéritos da UITP, Union Internationale
des Transports Publics, realizados no âmbito
da União Europeia desde o início da década
de noventa.). As ruas e outros espaços urbanos
não devem restringir-se a vias ou nós rodoviários,
mas devem ser promovidos como espaços destinados
a incentivar a troca comercial ou social, a reconciliar
o homem e o seu meio ambiente. A circulação
automóvel pelo ruído que provoca, pelas
emissões de substâncias tóxicas, a
par da ocupação desregrada do espaço
público, não é mais tolerada, suscitando,
cada vez mais, contestação pelas populações
que a consideram um entrave à liberdade de movimentos.
Ela é, pois, cada vez menos compatível com
o respeito pelo ambiente e paisagem urbana.
Sem questionar a necessidade de intervir na área
central da Covilhã, que considero indispensável
(o diagnóstico da situação de referência
isso indica), do que me parece não haver dúvidas
é que se trata ainda de uma perspectiva micro e
convencional de ver os problemas, muito baseada na engenharia
de tráfego, independentemente da qualidade da equipa
projectista.
Intervir num tecido urbano consolidado
e tradicional não requereria um tempo de reflexão
para que as "fundações" da melhor
solução planeada ficassem efectivamente
sólidas? Os covilhanenses certamente que não
gostariam de ver acrescentar à imagem que guardam
do Pelourinho como "lugar urbano central" de
encontro, convívio e manifestações
urbanas várias, esta outra de Silo-Auto, sempre
mais redutora do que aquelas que a autora da citação
extraída do Notícias da Covilhã criticava,
perplexa, há pouco mais de duas décadas:
as de Centro Cívico e Praça do Município.
No fundo, não se estará a curar um mal com
outro maior ainda?
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