Urbi et Orbi - Como
é que foi tocar hoje na Covilhã?
Jorge Palma - Foi porreiro, foi óptimo. E há
várias razões. Houve muita simpatia, houve
uma boa recepção por parte do público.
As condições técnicas... Bom a acústica
neste pavilhão não é a melhor. Já
toquei por duas vezes no Teatro-Cine e lá têm
melhores condições acústicas. Mas de
resto, foi bom. Foi o reencontro com este guitarrista, o
Mário Delgado, já não tocávamos
juntos há uns tempos largos. E, foi bom, é
sempre um gosto tocar.
U@O - Prefere tocar em espaços maiores com mais
público ou em espaços mais pequenos?
JP - Se as condições forem adequadas gosto
de tocar em estádios, para muita gente. Mas aí
é preciso ter muito cuidado com o som, e também
com as pessoas, para que se sintam envolvidas porque se
houver falhas técnicas as pessoas começam
a dispersar e acabam por não captar o que estamos
a fazer no palco. São coisas muito diferentes. Eu
gosto de brincar das duas maneiras, ou das várias
maneiras. Gosto do trabalho de estúdio também,
gosto dos ensaios, trabalhar sozinho também é
bom. Acordar e ir para o piano ou para a guitarra. Em termos
de público gosto porque tenho feito várias
coisas. Teatros, auditórios gosto porque as pessoas
estão no seu lugar, mais concentradas, há
mais silêncio, menos dispersão. Mas também
gosto desta brincadeira, com muita gente, alguns já
com os copos...(risos) nas semanas académicas normalmente...É
o caso.
U@O - Qual é o instrumento preferido, a guitarra
ou o piano?
JP
- Eu tenho uma relação mais antiga, quase
desde que nasci, com o piano. A guitarra vem da adolescência...
É um bocado difícil responder a isso porque,
por exemplo músicas que componho ao piano normalmente
têm um carácter, uma personalidade diferente
das que eu componho à guitarra... a guitarra é
mais leve, mais transportável, leva-se para todo
o lado...eu associo mais a guitarra a viagens, a comboios,
a hotéis. O piano é mais sedentário,
mas é o instrumento que conheço melhor, que
estudei a fundo, de uma maneira organizada. Na guitarra
sou um autodidacta, aprendo aqui e ali, com amigos, com
pessoas que encontro, com os discos...
U@O - Onde é que se inspira para escrever as músicas?
JP - Nas pessoas, naquilo que vou vivendo, nas
viagens, nos encontros, nas histórias, a que assisto
e nas que ouço contar, em livros, noutros discos
e concertos. Em quadros, peças de teatro. Misturo
um bocado de toda a experiência que tenho. Tudo o
que me chega fica cá e depois...Às vezes faço
um trabalho mais regular, mais seguido, mais constante,
no sentido de ...trabalho mesmo. Mas sobretudo acho que
é o trabalho diário, a experiência.
Isto não presta, vai para o lixo. Isto já
pode valer qualquer coisa...
U@O - Bob Dylan foi, em termos musicais, uma grande
inspiração. Que outros músicos o
influenciaram?
JP - Eu ouvi Dylan quando tinha 14, 15, 16 anos mas
na altura não escrevia canções. Não
me interessei particularmente por ele até aos meus
vinte e alguns anos. Aí levo com o Dylan todo,
começo a receber a informação toda
das letras, sobretudo das letras e comecei a receber a
influência dele e de outros como o Paul Simon, o
James Taylor, uma série de grandes autores americanos.
Aí era mais virado para as américas. Na
minha adolescência era mais Inglaterra, Beatles,
Stones, Animals... Led Zeppelin já são americanos,
e posteriores... Tenho tido nuances, por exemplo, abro
bastante para o Jazz, até aos 20 anos, depois para
o Country, por causa de encontros que tive em Paris e
por aí fora... A música Clássica,
umas vezes com mais atenção, outras... houve
alturas em que me desinteressei completamente. Depois
voltei... Portanto isto é assim um jogo...
U@O - A ligação à música
é muito antiga. Começou a tocar piano tinha
cinco anos, foi muito difícil o começo de
carreira?
JP - Não... repare, eu acho que agora
posso falar de uma carreira na medida em que há
de facto um compromisso. Neste momento não poderia
fazer honestamente o que fiz há vinte anos. É
do género, "Eh pá! Tchau, até
qualquer dia", ir-me embora sem prazo de regresso,
ou sem saber se regressaria ou não. Posso falar
em carreira agora, até com a própria reacção
do público, que me compra mais discos. Porque eu
nunca encarei a minha vida musical, ou a minha relação
com a música como uma carreira. Mas de um modo
geral, a minha forma de ganhar dinheiro e de viver tem
sido sempre através da música, da guitarra,
escrever e cantar...portanto não foi uma coisa
premeditada, a minha relação com a música
foi uma coisa que foi acontecendo, e que eu, de facto,
nem sequer considerava uma profissão, ou um trabalho.
U@O - De facto sua postura sempre foi descontraída
relativamente à fama e, no entanto, podemos considerá-lo
uma lenda viva da música portuguesa...
JP - (risos) Eu rio-me cada vez que me falam
nisso. Já é a segunda vez
que me chamam lenda viva num espaço de quinze dias.
Eu acho piada...Faz-me ficar um bocado babado. Não
sei, não tenho dissociado a música dos outros
assuntos da vida, portanto não me tem preocupado
e mesmo hoje não me preocupo muito com o futuro...Apesar
de...é evidente a longevidade de uma pessoa não
tem prazo e gostava de deixar as coisas mais ou menos
compostas em termos de...não faço tenções
de ser rico. Sobretudo de fazer fretes para ter mais dinheiro
e isso é uma felicidade que eu tenho tido. Ter
uma vida bastante digna e com uma qualidade muito superior,
sobretudo à grande maioria das pessoas, portuguesas
e no mundo em geral. Faz-me sentir bem, é fazer
aquilo que gosto e isso é um privilégio.
U@O - A preocupação com as letras que
escreve é notória. Qual é a sua musa
inspiradora?
JP - Tento equacionar de uma maneira saudável
para mim, tudo o que me aparece, tudo o que tenho conhecimento.
E é claro que isso depois se transmite para as
outras pessoas. Procuro ser honesto comigo próprio,
e não me considero nada estúpido. Acho que
tenho uma sentido crítico apurado, em relação
a mim próprio também. Às vezes cometo
excessos... as minhas bebedeiras... Eu estou neste momento,
por uma questão de sobrevivência ... abandonei...
Acabo por ser uma pessoa mais ou menos equilibrada...
Eu tenho vivido mesmo, não me tenho deixado manipular,
nem subjugar por regras, não me tenho deixado seguir
por esquemas perigosos que cortam a nossa liberdade. E
portanto, quando estou a escrever estou a dizer aquilo
que sinto, e aquilo que penso.
Depois houve alguns acidentes de percurso, como por exemplo
a tropa. No momento em que tive de ir para a tropa, para
a guerra, isso obriga-me a desviar do meu circuito de
Lisboa e atira-me para um fosso que é a Escandinávia.
Para mim é um choque enorme. Venho de um país
latino que vive uma ditadura há cinquenta anos,
no qual eu vivi até aos vinte e tal anos... Com
essa idade, em que a minha personalidade, o meu carácter
está formado, tem todas as virtudes, todos os vícios...levo
com este choque cultural tremendo. A viver numa comunidade
em que eu e a minha namorada éramos os únicos
portugueses, vamos com o espírito de que a mulher
é que vai lavar a louça e fazer a comida,
e lá não era nada assim. Um país
onde se discutia abertamente política na televisão,
e em Portugal nem pensar...
U@O - É difícil para nós imaginarmos,
apesar de tudo o que se diz, essa repressão. Como
era ser músico antes do 25 de Abril?
JP - Era tudo muito cinzento, a própria
música... Tudo era apresentado de uma forma cinzenta,
era uma chatice. Havia uma severidade, ainda por cima
vendo bem, não era tão sério como
isso. Era um modo de estar muito autoritário que
era endémico... toda a gente era autoritária
por natureza. E havia a inveja e a denúncia. Havia
um espírito de denúncia, era horrível.
A queixinha... havia uma série de coisas tremendas
para um miúdo. Eu fiz tudo o que consegui (nomeadamente
as más companhias) para me escapar a essa rede
e felizmente consegui.
U@O - Passaram cerca de doze anos desde o último
álbum de originais. Porquê um interregno
tão grande?
JP - O "Bairro do Amor" foi um disco
que gostei muito de fazer e as pessoas, ainda hoje, gostam
de ouvir. Sou eu e o piano.
Já era a altura. Toda a gente me perguntava "então,
quando é que há um disco novo?" Senti
necessidade de me sentar e escrever, não uma música,
ou uma letra ou uma canção, mas fazer um
todo a que se pudesse chamar um disco. E trabalhei, dediquei-me
um bocado a isso, no início do ano passado. Entretanto
assinei contracto com a Emi-Valentim de Carvalho para
uma série de três discos, dos quais este
é o primeiro, isto atrasou tudo. Isto porque há
uma altura antes do Verão em que eu fico satisfeito
com aquilo que tenho, contacto músicos, produtores...Faço
a lista de convites, combinamos, vamos para estúdio,
gravamos o disco. O disco está pronto em Setembro
e era para ter saído em Novembro. Entretanto sai
a colectânea da outra editora, da editora anterior,
a Universal, que foi um sucesso de vendas...
U@O - Estava à espera desse sucesso?
JP - Não. De forma nenhuma. Aquilo
sai, começa a ter um impacto enorme... eu disse
"Eh lá!" Por um lado foi bom, porque
foi disco de ouro, foi o meu primeiro disco de ouro da
minha vida, a solo, sem ser Rio Grande, sem ser a colaborar
com outras pessoas, e aquilo está bem feito, bem
apresentado...Está feito com gosto. Por outro lado
atrasou-me a saída do disco de originais.
U@O - Tendo em conta o panorama musical da actualidade,
acha que é possível construir- se uma carreira
sem ceder a pressões?
JP - Eu acho que agora é mais difícil,
mas eu vivi a minha carreira assim. Para já havia
menos pessoas a fazerem aquilo que eu sabia fazer. O meio
era muito mais pequeno, havia um canal de televisão,
só depois surgiu a TV2, havia muito poucas editoras,
e eu conhecia toda a gente, os músicos que andavam
aí, toda a gente se conhecia. A gente fazia festas
uns com os outros, havia poucos concertos também,
mas era fácil, se houvesse qualidade, era o meu
caso... Tinha garra, tinha já alguns conhecimentos
musicais, tinha uma grande vontade de ouvir o que vinha
lá de fora e o que era feito cá também,
de fazer melhor...sobretudo a partir da minha tomada de
conhecimento do Sérgio Godinho, do José
Mário Branco, toda
essa malta e Zeca Afonso também, é claro.
E éramos quase da mesma idade. Tenho menos três,
quatro anos do que eles, mas na altura era mais puto,
era o puto. Fui aprendendo...E de facto abriram-me as
portas para muitas experiências. É evidente
que não se vendia discos quase nenhuns. Uma edição
de quinhentos discos vendida já era bom...Mas eu
tinha capacidade de fazer arranjos, trabalhei com a Amália,
com a Tonicha, com o Paco Bandeira, sei lá, com
muita gente. Eu escrevia as partituras para vários
instrumentos...Por isso, mesmo sem ser com as minhas músicas,
eu a cantar, eu conseguia sobreviver da música.
E aprender ao mesmo tempo. Embora não seja evidente,
não toco como um músico de jazz (a minha
onda é mais blues e rock) é algo que eu
ouço muito. Claro que todas estas experiências
no mundo da música me influenciaram.
E eu dei-me ao luxo de "adeusinho, vou-me embora",
e gravo o primeiro LP e desapareço... Depois quando
volto digo "olha, já tenho umas músicas
novas. Quem quer gravar isto?" Sabia da primeira
editora que estava interessada, "bora, grava-se".
U@O - Depois de tantos anos na estrada, ao olhar para
trás que balanço pode ser feito?
JP - Um balanço da minha carreira...
eu acho que tenho sido um privilegiado, por chegar aos
51 anos, ser o homem que eu sou, fazer tudo o que tenho
feito, estou nisto há vinte anos e dá-me
imenso gozo. A idade para mim não tem constituído
uma barreira, o que me deixa um bocado sossegado. Sempre
me senti bem. Desde ir tocar para o metro, em Paris e
por aí adiante, até gravar discos, dar concertos,
acho que tenho conseguido conjugar as coisas. Até
inclusivamente a vida familiar, apesar de dar um bocado
para o torto, às vezes. De qualquer maneira, sinto-me
contente com a vida que tenho levado.
U@O - Entre a aventura de andar pelo mundo, a tocar
em ruas onde ninguém o conhece, ou a estabilidade
de contratos e concertos agendados, o que é que
prefere?
JP - Eu sinto-me mais livre se me for embora
amanhã, sem saber para onde, se for andando. E
parar onde quiser, e tocar onde quiser...Em termos de
liberdade isso é muito mais pleno. Por outro lado
isso também tem um bocado a ver com a idade. Fazer
isso aos cinquenta anos torna-se mais difícil.
As pessoas acham menos graça. Dão menos
dinheiro, não é? Uma pessoa está
numa esplanada, aparece um miúdo ou uma miúda
de 19 anos, cheio de vida, as pessoas têm gosto
em contribuir para que essa felicidade continue, essa
alegria, esse espírito. Aparece um gajo já
de cinquenta e tal anos, o pessoal diz, "Eh, pá!
Vai trabalhar!" Eu houve vezes que (não foi
há muito tempo) eu às vezes, quando vou
lá fora faço essa experiência, pegar
na guitarra, por exemplo no metro de Paris, ou em Itália,
e tocar aquelas coisas..."How many roads must a man
walkdown...",ou
canções minhas, também pode ser,
para eles não perceberem. Lloyd Cole, ou Bowie...
Hoje tenho umas amarras que não tinha, quando me
atirei para o escuro...Para o escuro ou para a luz...
Eu não sei se hoje aguentava tipo sete horas por
dia em esplanadas, a berrar continuamente, depois vai
mais uma imperial, mais dez canções de seguida...Depois
passar o chapéu, receber o dinheiro, parar cinco
minutos e ir para outra esplanada. Ou para outra paragem
de metro, ou para outra estação de comboio...
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