Coro Misto da Covilhã no Estado de Carabobo
Sentimento e calor humano marcam digressão venezuelana

A digressão do Coro Misto da Covilhã na Venezuela percorreu três cidades do Estado de Carabobo. Entre a calma do país rural e a problemática situação dos grandes aglomerados urbanos, os covilhanenses ergueram bem alto o nome da cidade serrana e de Portugal. Aqui se resumem sete dias de vivência na realidade muitas vezes dura de uma nação da América Latina em vias de desenvolvimento.

 Por Sérgio Felizardo
NC/Urbi et Orbi

 

Emoção e muito calor marcaram todos os concertos do Coro Misto na Venezuela. Portugueses e venezuelanos renderam-se ao repertório dos covilhanenses

"Há muitas pessoas que vêm à Venezuela como turistas e vêem uma parte muito maquilhada do país. Julgo que o Coro Misto da Covilhã vai daqui com uma visão bastante clara em relação a isso. Um pouco forte, talvez, mas a vida nesta parte do Mundo é assim actualmente. Viram todos os problemas que temos, por exemplo, com a água, e muita gente vive assim todos os dias". É, de facto, forte, dura, mas também muito gratificante a visão que os elementos do grupo covilhanense trazem da digressão venezuelana que, no sábado, 21, terminou. Nas palavras de Miguel Lopez, coordenador de actividades culturais da Universidade de Carabobo, Estado que recebeu o Coro, a deslocação não foi propriamente um "passeio tropical à beira-mar". Antes, uma oportunidade única de viver uma realidade, que, afirma Miguel, "é tudo menos fácil". De, através da música e do calor humano, levar não só a cultura portuguesa a quem com ela pouco ou nada contacta, como, também, um pouco de conforto espiritual a um povo que sofre na pele o estigma da pobreza. Por vezes, mesmo no limiar da sobrevivência.
Três concertos em outras tantas cidades do Estado Carabobeño, levaram o Coro Misto a percorrer muitas centenas de quilómetros. Num país em que as características muitas vezes atribuídas a nações do terceiro mundo se apresentam à vista desarmada, os covilhanenses enfrentaram a escassez de água para tomar banho, a miséria escancarada dos bairros de lata, agravada pela seca e pelo intenso e constante calor, entre outras "privações" quase inconcebíveis na "Europa desenvolvida" em que vivem. Enfrentaram e adaptaram-se, dignificaram a cidade serrana, o País e a língua portuguesa e receberam toda a intensidade sentimental de um povo quente, caloroso, carente, mas digno, amigo e com uma vontade enorme de receber, fazer e divulgar cultura. A deles, como a dos outros. "Quando chegarem ao conforto das respectivas casas, em Portugal, temos a certeza que os elementos do Coro Misto vão recordar que, aqui, as pessoas continuam com dificuldades", vinca o coordenador. No entanto, Miguel faz questão de sublinhar que "mais importante que tudo" foi a receptividade calorosa que puderam sentir por parte de todos os públicos, presenteados com um programa "a capella" composto por músicas de raiz tradicional portuguesa e espirituais negros, épicos, românticos e até cómicos: "Todas as comunidades estiveram de alma e coração nos concertos e o que esta gente recebeu da vossa música é uma experiência 100 por cento positiva".

Pobreza social, riqueza cultural

Com "quartel-general" fixado no bairro de Naguanagua, zona periférica da capital do Estado, Valência (dois milhões de habitantes, a três horas de Caracas), onde ficou instalado na Casa Hogar Padre Febres Cordero, casa de acolhimento para meninas com dificuldades e dirigida por irmãs Josefinas, o Coro Misto estabeleceu fortes laços quer com as religiosas e as crianças, como com o Orfeão da Universidade de Carabobo (UC). Jovens, e menos jovens, alunos de um estabelecimento que conta com cinco faculdades espalhadas por vários pontos do Estado e cerca de um milhão de alunos, encontram na música uma forma de se dedicarem a algo que enriqueça o país onde nasceram. Cantam com o ritmo dos trópicos e fizeram todos os sacrifícios para que nada corresse mal, desde a preparação da comida a perderem aulas para acompanharem em permanência o grupo. Para Miguel Lopez a estadia da comitiva serrana, será, por isso, "impossível de esquecer". "Mesmo que de repente estes jovens venezuelanos se tenham confrontado com o que parece ser uma maneira diferente, mais evoluída, de apresentar cultura", acrescenta.
Uma opinião de que o maestro Luís Cipriano, também presidente da Associação Cultural da Beira Interior, entidade promotora do Coro, discorda: "É evidente que fomos confrontados com uma realidade que, em muitos aspectos, é terceiro-mundista e com a qual vivemos quotidianamente. No entanto, tivemos oportunidade de apresentar a nossa música em três magníficos locais, dois deles centros culturais de grande qualidade e com um público extremamente interessado e acolhedor. O que me deixa baralhado, porque em Portugal são raros os espaços com estas características. Não sei bem, por isso, onde é o terceiro mundo". O maestro não hesita mesmo em afirmar que todas as actuações "correram de uma forma excelente e vão deixar marcas nos elementos". O carinho do público e as importantes distinções oficiais com que o Coro Misto da Covilhã foi brindado em Valência, no Centro Cultural do jornal "El Carabobeño", em Puerto Cabello, na Igreja Virgem de Coromoto, e em Montalban, no Centro Cultural desta cidade rural, atestam as elevadas expectativas com que a organização e os locais percorridos acolheram os visitantes.

País de contrastes

A Venezuela mostrou-se aos portugueses como o país dos grandes contrastes. Fora de qualquer roteiro turístico, das ilhas tropicais e das praias de areia fina, o Coro Misto covilhanense contactou com os piores aspectos da vida local. Apercebeu-se da insegurança, espelhada nos gradeamentos que defendem todo e qualquer edifício, tenha 15 andares, ou seja apenas pouco mais que uma barraca, mas viu, igualmente, a outra face da moeda.
A nação sul-americana está em desenvolvimento e nas zonas centrais do aglomerado urbano de Valência o progresso é visível. Os centros comerciais abundam, a Internet é um vicio cultivado por milhões, os telemóveis são indispensáveis e o trânsito apresenta-se, muitas vezes, caótico. Uma situação que não é de admirar, já que a Venezuela alberga no seu seio potencialidades naturais importantíssimas. Do aproveitamento do turismo das ilhas, ou da Amazónia que ocupa parte do território, ao petróleo, passando pelos diamantes, pela fruta que parece nascer em todo o lado, até às mais variadas condições climáticas, há todo um manancial por explorar e a ser explorado.
O que falta, garante Vasco Marques, técnico de serviço social no Consulado de Portugal em Carabobo, em declarações ao Notícias da Covilhã, "é experiência governativa". "Não chega só ter vontade de fazer as coisas e trabalhar com afinco, como eu reconheço que muitas pessoas do actual governo venezuelano estão a fazer. É necessário ter calo político para levar um país de cerca de 20 milhões de habitantes a bom porto", complementa. Daí a vontade recentemente demonstrada pelo actual presidente da República Boliviana da Venezuela, Hugo Chavez, de integrar o Mercosul, constituído pelo Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e pelos associados Chile e Bolívia. Com a desvalorização brutal do bolívar em relação ao dólar, ligar-se aos países vizinhos em termos económicos pode ser uma das soluções para o futuro. Mas, por enquanto, entrar num gigantesco centro comercial de Valência, onde pontificam grande parte das grandes marcas mundiais de vestuário ou de restauração rápida, símbolos das sociedades modernas e desenvolvidas da Europa e do norte do continente americano, continua a ser uma experiência de choque. É que, logo ali ao lado, mesmo ao virar da esquina, a miséria olha-nos de frente sem qualquer tipo de pudor. Nua e crua.

"Filigrana da Estrela"

As diferenças e os grandes contrastes, porém, esbateram-se um pouco durante os momentos em que, dos palcos, a música dos covilhanenses desceu para tocar o coração das assistências.
Para os coralistas os momentos foram únicos. Para Luís Cipriano foi mais uma prova de que o nível dos serranos cresce a cada digressão. O público, do venezuelano, ao português, nunca conseguiu conter a emoção. Na primeira apresentação, levada a cabo na terça-feira, 17, no Centro Cultural Eladio Alemán Sucre, no edifício do jornal diário de expansão nacional "El Carabobeño", cerca de 280 pessoas, entre as quais o director da Cultura da Universidade de Carabobo, representantes do Consulado português, de associações de emigrantes, da Câmara Portuguesa Venezuelana da Indústria e Comércio, bem como das irmãs e crianças da Casa Hogar, aplaudiram de pé e entusiasticamente a prestação dos covilhanenses. Uma grata surpresa para muitos compatriotas, para quem a cultura portuguesa se limita, muitas vezes, ao folclore e ao fado.
No dia seguinte, quarta-feira, 18, o sucesso repete-se. Desta vez em Puerto Cabello, a cidade portuária mais importante da nação e onde a comunidade portuguesa está bastante enraizada. Na Igreja da Virgem de Coromoto, onde todos os anos, em Maio, se realizam as festas de Fátima, as lágrimas escorreram pelo rosto de muitos dos quase 300 espectadores. Emocionados por ouvirem as velhas músicas do seu país e por contactarem com um bocadinho do cheiro e do sabor da Beira Interior. "Filigrana da Estrela, brisa refrescante dessa Serra de mil encantos", diria na sexta-feira, 20, na cidade rural de Montalban, o poeta português Jorge de Amorim. Na Venezuela há 35 anos, o escritor, com 17 livros editados, ensina a língua de Camões em cinco zonas diferentes do Estado de Carabobo e, a residir numa aldeia contígua a Montalban, não quis perder a ultima actuação do Coro Misto. Um espectáculo muito especial, introduzido pelo cônsul da Roménia, que num discurso espantoso descreveu a cidade da Covilhã e toda a sua envolvente económica, social, histórica e paisagística e que terminou com a interpretação de duas peças clássicas em conjunto com o Orfeão Universitário. Já no autocarro, preparados para cerca de uma hora de viagem até Valência, os elementos do Coro ouviram as palavras do presidente da Câmara local, Túlio Salvatierra, carregadas de uma emoção que resume toda a digressão e, no entender do maestro Cipriano, "dão o alento necessário para que ninguém se arrependa e para que todos os esforços sejam feitos no sentido de que o Orfeão carabobeño possa, agora, retribuir a visita: "Nesta hora que vocês partem de Montalban, as dificuldades com que vivemos vão voltar. É como acordar de um sonho bom que a vossa música nos proporcionou. Muito obrigado por terem vindo a esta terra humilde, que vos recebeu com muito esforço e que, a partir de hoje, quando as coisas estiverem mal pode sempre ouvir esta música divina e voltar a sonhar. Montalban nunca vai esquecer o Coro Misto da Covilhã".

  

Casa Hogar Padre Febres Cordero
Uma esperança para pequenas vidas de miséria

Muitas lágrimas, abraços, juras de amizade eterna e uma emoção impossível de conter marcaram, no sábado, 21, a despedida da Casa Hogar Padre Febres Cordero. Local, que, durante uma semana, acolheu o Coro Misto da Covilhã. Com muitas dificuldades e um grande esforço para que todas as carências fossem minimizadas.
Dois exemplos chegam para que se visualize o cenário que envolve o dia-a-dia de um internato para meninas carenciadas dos três aos 18 anos, situado num dos maiores bairros periféricos de Valência, onde a degradação das habitações precárias e o lixo formam o essencial da paisagem. A água, fornecida por um camião que todos os dias percorre o Bairro de Naguanagua, na periferia de Valência, muitas vezes não chega aos chuveiros, pelo que os banhos diários são, obrigatoriamente, tomados com baldes. Por outro lado, o desperdício de comida é absolutamente proibido, pois a "fartura europeia" não se compadece com um espaço dirigido por irmãs Josefinas e sem qualquer apoio estatal. O que vai valendo, diz em tom calmo e pausado, a directora da Casa, Maria Luisa Rivas, "são as ajudas de algumas entidades particulares, em termos de comida, roupas e na educação das nossas meninas". Perto de 50 crianças, vitimas da pobreza extrema, da toxicodependência dos pais, ou mesmo do abandono, encontram em Naguanagua, um lar que nunca tiveram. "Damo-lhes amor, muito carinho e a possibilidade de estudar", continua Maria Luisa Rivas. Uma gota num oceano de carências, que acaba por deixar muitos casos sem resposta. A selecção das crianças admitidas na Casa Hogar tem de ser criteriosa, pois os meios são escassos, e chegam pedidos de todo o País. Neste momento há meninas dos arredores de Valência, mas também de Caracas e de outras cidades venezuelanas.

Associação Cultural oferece aparelhagem e microondas

A Casa, fundada em 1844, é, desde há 14, dirigida pelas irmãs Josefinas (congregação de origem mexicana). Três religiosas e duas voluntárias dedicam a vida, sete dias por semana, às crianças com um único objectivo: "Terminar com a vida miserável de onde estes seres humanos, sem excepção, emergem". Um drama quotidiano com que o Coro Misto teve oportunidade de conviver e sentir na pele. A presença dos covilhanenses, assegura Maria Luisa Rivas, foi muito importante para todas as meninas. "Tivemos um ambiente diferente nestes dias e vocês puderam constatar a afectuosidade com que estas crianças vos acolheram. Espero que o Coro seja um incentivo para elas, para que se motivem a viver e a lutar por algo melhor". Para cimentar ainda mais a amizade, a Associação Cultural da Beira Interior não deixou de tentar minorar algumas das dificuldades que afectam a Casa Hogar Padre Febres Cordero. Foi assim que, antes da despedida, as meninas receberam uma aparelhagem sonora para facilitar as aulas de danças tradicionais promovidas semanalmente (bem como para ouvirem os discos do Coro, também oferecidos) e às irmãs foi entregue um forno microondas. Uma maneira simples de facilitar um trabalho árduo e que constavam da lista de aquisições da instituição... para daqui a três anos.


 

  

Comunidade portuguesa
Meio milhão sem apoios para divulgar cultura

São cerca de 500 mil em toda a Venezuela. A maioria partiu da ilha da Madeira nos anos 60 e os seus filhos nasceram já na América Latina. Os portugueses são vistos pelos venezuelanos como um povo trabalhador e honrado, mas da sua cultura, pelo menos até à última semana, conhecem apenas o folclore. 27 associações, denominadas centros culturais, tentam manter os laços ao país de origem. Os apoios do Estado português, no entanto, rareiam e "para manter viva a chama da pátria", para que os luso-descendentes conheçam um pouco da terra dos pais, é necessário um grande esforço financeiro. Apesar de tudo, garante Eduardo Celestino Gonçalves, secretário geral de um dos maiores centros portugueses na Venezuela, o Centro Social Madeirense, "a comunidade é unida e procura, de todas as formas, minorar as carências daqueles menos afortunados".
A certeza de Eduardo Gonçalves esbarra, contudo, numa sombra de dúvida, quando se fala do nível de interesse demonstrado pelo governo português relativamente à comunidade. Os apoios financeiros para a realização de actividades culturais, por exemplo, quase não existe, como aliás comprovam as declarações de Vasco Marques, técnico de serviço social do Consulado de Portugal no Estado de Carabobo: "O que podemos fazer em termos de divulgação da nossa cultura é sempre reflexo dos apoios que recebamos de Lisboa. Ou seja, a maior parte das vezes temos de fazer das tripas coração".

Cônsul não aparece, Cipriano escreve ao Presidente da República

A afirmação de Vasco Marques, mesmo assim, não justifica a ausência do cônsul português em qualquer dos momentos da digressão do Coro Misto da Covilhã, alegadamente e como foi avançado por elementos ligados à comunidade portuguesa, "por não conhecer o grupo". Luís Cipriano e restantes membros da comitiva covilhanense não gostaram da atitude do representante nacional em Carabobo e o maestro vai mesmo apresentar um protesto escrito ao Presidente da República, Jorge Sampaio.
O povo português, bem como muitos dos seus filhos já nascidos na América do Sul, pelo contrário fizeram questão de estar sempre presentes. Apesar de a organização da digressão ser toda da responsabilidade da Universidade de Carabobo e de muitos centros comunitários se "queixarem" de não terem tido conhecimento da visita atempadamente. Todos tentaram, de alguma forma, prestar a sua colaboração. Foi assim que todos os pequenos-almoços foram oferecidos por padarias de portugueses e que no Centro Social Madeirense e no Centro Social Lar Lusitano, ambos em Valência, os covilhanenses foram recebidos em momentos de lazer e descontracção, com banhos de piscina, almoços de convívio e troca de ofertas de âmbito cultural.


 

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