Jorge Bacelar
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Novilíngua
Nestes tempos meios bizarros
da globalização, temo-nos deparado com o surto
de uma 'novilíngua'* praticada um pouco por toda a parte,
com maior incidência na economia, nas tecnologias da informação
e na política. Ouvimos e lemos recorrentemente palavrões
como 'sinergias', 'outsourcing', 'management', 'target', 'share',
'marketing', 'competitividade', 'globalização',
'flexibilidade', 'governabilidade', compensadas com algumas tranquilizantes
para os praticantes do politicamente correcto, como 'etnicidade',
'minorias', 'identidade', 'fragmentação', etc.
Vemos e ouvimos políticos de pacotilha afirmar a sua intenção
de 'fazer démarches', ou criticar o poder central por
ter 'posturas demasiado soft', vemos e ouvimos empresários
de vão de escada referindo as suas 'management strategies'
que incluem um profundo 'market-research', com a definição
de 'targets' inequívocos, bem como um primoroso 'scheduling'
de 'cost-effectiveness', recorrendo a serviços de 'outsourcing',
no sentido de optimizar os 'cash-flows'... perceberam alguma
coisa? Eu confesso que não.
Já ninguém fala Português nesta terra? Assim
como assim, ainda prefiro um 'fato' do acordo ortográfico,
a um 'fact'... e nem sou propriamente nenhum paradigma de patriotismo.
Mas peguemos num exemplo comum e num dicionário: 'sofisticação':
"acto ou efeito de sofisticar;". Fala-se, usa-se, diz-se
em qualquer situação em que nos deparemos com algo
minimamente requintado. Seja uma dama toda produzida para o baile,
seja um equipamento de ponta. É, não é?
Vamos ver ao dicionário? "Sofisticar: sofismar; subtilizar;
falsificar; adulterar; enganar; requintar ao máximo; aprimorar;"
Será preciso mais? O meu telemóvel, que coisa,
um aparelho tão 'sofisticado'... é, afinal, um
aparelho 'falsificado'? E este é um termo de uso comum...
imagine-se agora o chorrilho de disparates que não estaremos
(todos) a cometer quando queremos brilhar a falar estrangeiro...
Não quero com isto arvorar-me em defensor da pureza imaculada
e virginal da nossa sacrossanta língua pátria.
Basta pensar que sou designer, e, à excepção
dos nuestros hermanos, ninguém mais se deu ao trabalho
de traduzir esse termo. É design, fica design, e pronto.
Estes dialectos de seitas profissionais (veja-se a rapaziada
que trabalha nos computadores, e tente-se entender um décimo
do que eles dizem) funcionam bem no interior dessas comunidades.
Há um entendimento básico, uma aceitação
do significado de cada palavra, que é utilizada adequadamente
no contexto. Na minha seita, também se usam, mas importar
esses dialectos para o dia-a-dia é um processo que demora
gerações a concluir-se. Acho que assim, estamos
a andar mais depressa que as nossas pernas. E arriscamo-nos a
tropeçar e a ter um 'crash' e, sabe-se lá, sofrer
um 'break-even'...
*para quem não conhece
o termo, trata-se de uma expressão criada por George Orwell,
autor de '1984', donde saiu uma outra expressão que, essa
sim, todos conhecemos: Big Brother... Novilíngua designa
o uso de termos que anulam a riqueza e diversidade do vocabulário
corrente e produz outros que tornam hermética e unívoca
a compreensão do fenómeno relatado.
Este artigo foi de certo modo
inspirado na leitura do texto "A nova bíblia do Tio
Sam", de Pierre Bourdieu e Loic Wacquant, publicada no jornal
NON! http://www.zonanon.com/plural/doc51.html |