João Correia
João Correia

 

 

 

 


Cultura e Prazer

1. O organizador anunciava no Pavilhão Atlântico conferências sobre Ciência e pergunta de repente: "Porque é no espelho que nos vemos do avesso e nunca ao contrário?" A pergunta assemelhava-se a uma daquelas desarmantes interpelações de algibeira que nos fazem sorrir e pasmar da nossa ignorância. Portugal é um país péssimo a Matemática, menos péssimo a Física. Num país onde as opiniões abundam, tanto que se podiam abrir hipermercados só para as vender e obter, ainda assim, lucro, a Ciência tem um preço de saldo.
Outra história que tem a ver com isto: Paulo Portas, o inteligente e bem falante líder do PP, criticou João Soares por ter dado o nome de Amália a uma rua menor de Lisboa, quando podia, por exemplo, dar esse nome ilustre a uma rua que tem uma data que ninguém conhece: 24 de Julho. O investigador e cronista Vasco Pulido Valente, uma das inteligências mais trauliteiras e mordazes da nossa cena pública, explicou-lhe: o 24 de Julho é só a data do desembarque dos liberais, o princípio de uma guerra civil sangrenta que terminou com a monarquia miguelista. Não é um uma data que ande por aí aos trambolhões - que toda a gente conheça pela leitura dos jornais - mas é uma data importante.
Finalmente Vasco Graça Moura, um dos escritores e intelectuais mais brilhantes deste país - do qual tudo me divide, desde a política à moral, passando pela opinião sobre a pena de morte, o que em nada obscurece os seus méritos - explicou por A mais B que o elementar desconhecimento da língua faz com que possam aparecer licenciados, bacharéis e até mestres que nunca tenham lido um clássico integral em língua portuguesa. No limite, vi-me diante desta possibilidade eminente: é possível que um aluno meu faça o curso e conheça a teoria Matemática da Comunicação, a Teoria do Agir Comunicacional, a Crítica da Cultura de Massa, a dimensão comunicacional da tradição, a diferença entre as éticas kantianas e aristotélicas, o gatekeeping, o agenda-setting, redija bem notícias, seja um hábil manipulador de estratégias de comunicação e de técnicas de multimédia e nunca tenha lido Eça de Queiroz. Ou se leu, terá sido por obrigação para cumprir uma seca, sem, coitado, fruir o prazer que brotam nalgumas das suas deliciosas e demolidoras ironias. E já não falo do Aquilino, porque é o escritor português mais difícil, e do Ruy Belo, cuja poesia é tão espantosamente bela que é uma aflição saber que há gente que nunca a viu. E tão mau como isto: poderá esse licenciado acerca do raciocínio matemático supor que se trata de uma forma descartável de conhecimento facilmente substituível pela manipulação de máquinas de calcular. E ignorará tudo sobre a Vida e o Universo, os processos biológicos, químicos e físicos que determinam a espantosa existência individual do ser humano e pelo menos alguma ideia elementar sobre o funcionamento do Universo. E pouco saberá sobre a história do seu e meu País que não diga respeito a algumas generalidades sobre os Descobrimentos que alimentem uma certa retórica muito in acerca da identidade nacional.
Teremos criado, eventualmente, uma geração de analfabetos especializados, produto de uma escolarização que fomenta - alguma coisa - certa forma de conhecimento mas esquece- de todo- a cultura?

2. A resposta passa por três pontos essenciais: os media, a escola e a família. A crítica moralizante ao papel dos media regista, neste campo, algumas debilidades. É evidente que a comercialização generalizada da cultura liquidou uma certa concepção iluminista da cultura. Os processos de desregulação dos media e de massificação, quando levados a efeito num país com escassas defesas culturais, podem conduzir a erros trágicos e a consequências dramáticas. Nesse sentido, a bigbroderização da cultura - a noção propalada pela nova teórica social, Teresa Guilherme, segundo a qual quem tem ética passa fome - conduz-me à especial conclusão que, em Portugal, continua a fazer sentido falar em serviço público. Não me refiro à defesa desse porta-aviões à deriva com um modelo anquilosado chamado RTP, sobre esse doente aparentemente incurável - onde há excelentes meios, excelentes técnicos e profissionais - já pouco mais se pode esperar senão que ela bata no fundo para depois se privatizar, debaixo de um coro de lamentos dos titulares do Estado que, por acção, omissão ou resignação, irão contribuir para a sua eventual depradação por parte de um grupo privado. Refiro-me a um conceito de serviço público que assente nos seguintes raciocínios: a) como sou, por princípio, contra a regulamentação censória e a proibição de conteúdos, por um conjunto de razões que se prendem com a eventual subjectividade dos critérios, a sua ineficácia e os riscos que decorrem desse precedente; b) reconhecendo simultaneamente que a simples regulamentação mercantil pode conduzir a uma diminuição do pluralismo, ainda que disfarçada sob a capa de diversidade dos canais, e a uma generalização da cultura medíocre, nivelada por uma certa alarvice gulosa das audiências logo c) entendo que é necessário incentivar a produção e a difusão de programas que não tenham um retorno lucrativo imediato, mas que se pautem por critérios como sejam o pluralismo informativo, níveis de gosto aceitáveis ou mesmo exigentes. Este serviço público pode ser assegurado por entidades estatais ou privados aos quais concedam incentivos, desde que sejam asseguradas aos profissionais condições de pluralismo, inovação, criatividade.
A este primeiro ponto que admito ser influenciada por uma certa ideia de iluminismo acrescento outros dois que estes sim, parecem ser menos influenciadas por aquela família de pensamento que se reclama do mais puro e sincero prosseguimento desse iluminismo.
O segundo ponto passa pela recuperação da autoridade da escola. Claro que é inútil pensar numa escola que não esteja aberta às novas tecnologias, que não conheça as novas realidades sociais, que não proporcione a convivência democrática e o direito à crítica. Porém penso que tudo isso foi confundido com facilitismo, nivelamento por baixo e um discurso paternalista implícito que pode ser caricaturado deste modo: "É preciso proporcionar aos pobres coitados a oportunidade de serem alguém na vida". Ora, os "pobres coitados" têm o direito a ter professores exigentes, exigentes porque se preocupam com eles, como a qualidade do saber transmitido. Têm o direito de saber que o conhecimento que proporciona algum prazer é difícil, exige um certo nível de sacrifício, implica saber ajustar prioridades. Em suma, democratizamos muita coisa. Falta democratizar a exigência.
Em terceiro lugar, importa recuperar a responsabilidade da família. A família nunca será o que era e, em muitos casos, ainda bem. Para já é cada vez menos um modo relação social que seja tida como adquirida por toda a vida. Por outro lado, é cada vez menos uma forma de relação social que tem um modelo único. Porém, independentemente de saber se a família é cristã, se é registada como família legalmente sancionada ou resulta de uma pura união de facto, o que importa é que os pais tentem não despejar a responsabilidade da educação para a escola. Há valores éticos - subjacentes a uma ideia de autoridade baseada no reconhecimento - que são inerentes a esta forma de relação independentemente da sua caracterização religiosa ou jurídica. E vale a pena mantê-los e revitalizá-los.

3. No meio desta perplexidade que é saber que fazer da Educação hoje, a nossa Universidade foi avaliada pelo DN. Independentemente de alguns títulos mais berrantes, os textos do DN foram quase sempre sóbrios, inteligentes e moderados. Ficamos a saber que tínhamos boas instalações, bons equipamentos desportivos, boa acção social escolar, boa distribuição de computadores por aluno, menos boa distribuição de computadores por docente e menos boa ligação à Internet, assim como número de livros nas Bibliotecas. A celeridade da qualificação dos professores ainda não é a desejada mas com a conclusão da actual vaga de Doutoramentos e Mestrados, esse percurso será concluído. Em muitos itens estamos relativamente bem no ranking das universidades portuguesas, noutros estaremos relativamente menos bem. Até agora o pior índice diz respeito à capacidade de atracção. A interioridade e a ausência de acessibilidades é um preço caro pago anualmente pela Universidade. Para além daqueles pontos que se poderão colmatar com a alteração de prioridades (ligação à Internet, computadores e livros) o resto far-se-á com o esforçado trabalhinho da formiguinha, o qual não dá frutos a curto e médio prazo.

 

P.S. (Em jeito de S.O.S.)- A menos boa distribuição de computadores por docente lembrou-me o meu caso pessoal, já que todas as semanas trabalho no URBI, agora na Recensio e não serei dos que tenho menos textos na BOCC. Para além disso, coloco textos de apoio na página dos Académicos e pratico discussão com os alunos através de Fóruns Multimédia. Como porém, estava a dar aulas no Ernesto Cruz no primeiro semestre, não fui contemplado na distribuição de computadores por gabinete. Estando certo que, por este modo, todos os responsáveis já contactados a fim de tomarem conhecimento desta omissão terão a gentileza de se lembrarem da necessidade de a ultrapassar, aguardo com respeitosa serenidade a tomada de medidas adequadas.

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